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TRIBUTÁRIO
A Fazenda Pública em Juízo e a questão da “produção de provas contra si mesma”
Hugo de Brito Machado Segundo
15/12/2017
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, em mais de uma oportunidade, que a Fazenda Pública não pode ser obrigada a juntar em um processo judicial cópia de processos administrativos que estejam em seu poder, quando no processo judicial se questiona a validade do tal processo administrativo ou de ato praticado ao seu final, pois não poderia ser obrigada a “produzir prova contra si mesma”. A tese, que apareceu em acórdão de 2011, vem sendo reiterada, como se percebe deste trecho constante em julgado proferido há pouco mais de um mês:
2.”A despeito da possibilidade de o magistrado determinar a exibição de documentos em poder das partes, bem como a requisição de processos administrativos às repartições públicas, nos termos dos arts. 355 e 399, II, do CPC, não é possível instar a Fazenda Pública a fazer prova contra si mesma, eis que a hipótese dos autos trata de execução fiscal na qual há a presunção de certeza e liquidez da CDA a ser ilidida por prova a cargo do devedor.” (REsp 1.239.257/PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe 31.3.2011).” (REsp 1682103/RS, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/10/2017, DJe 17/10/2017)
Com todo o respeito, o referido entendimento não pode ser aceito, devendo a Corte repensá-lo com muita atenção.
Em primeiro lugar, o direito de não produzir prova contra si, como as garantias constitucionais do processo em geral, é um direito do cidadão contra o Estado, destinado a proteger o primeiro do segundo, especialmente no que tange ao exercício do poder de punir. Subjaz, por exemplo, ao direito ao silêncio, sendo certo que tais garantias não podem ser usadas pelo Poder Público contra o cidadão no âmbito de uma relação travada com ele, aspecto que o Supremo Tribunal Federal já reiterou por diversas vezes, chegando mesmo a editar a Súmula de n.º 654.
Como acréscimo, há um fato, que talvez seja a causa do que foi mencionado no parágrafo anterior, que não pode ser esquecido. O Poder Público, em suas relações com o cidadão, deve motivar seus atos, que, de mais a mais, estão sujeitos ao princípio da publicidade e ao controle jurisdicional. Tudo isso é frontalmente incompatível com a ideia de que a Fazenda não é obrigada a apresentar, em juízo, as provas de que o ato administrativo praticado é legal. O cidadão seria quem teria de provar a ilegalidade. Aplicada essa ideia ao processo penal, de onde o direito de não se auto incriminar se origina, ter-se-ia a esdrúxula situação de o réu da ação penal ter de provar sua inocência. O Ministério Público não precisaria sequer declinar os motivos da acusação, ou juntar provas já colhidas em outro momento, pois isso poderia fragilizar a acusação, revelando sua eventual ilegalidade, ou a eventual “inocência” do acusado. Como se a acusação pudesse, legitimamente, pretender o contrário, sob o mantra de que “a defesa que descubra, aponte e prove os erros da acusação”, ou mesmo de que a defesa “descubra qual é a acusação”.
Há certas construções jurisprudenciais do STJ, em matéria processual tributária, que fazem lembrar Kafka. Essa não. Essa não apenas lembra. Não é análoga, ou parecida. É simplesmente a exata cópia do que ocorre com Joseph K em “O Processo”. Depois de perguntar algumas vezes por que estava sendo detido, sem resposta, K., o protagonista/vítima, inicia o seguinte diálogo com os sujeitos que o invadiram seu quarto logo cedo e começaram a comer seu café da manhã enquanto esperavam que ele se preparasse para ser levado:
“– Como posso eu encontrar-me sob prisão? E desta maneira, quem pode estar?
– Cá o temos agora a recomeçar – disse o guarda enquanto molhava uma fatia de pão no pequeno boião de mel. – Nós não respondemos a esse gênero de perguntas.
– Vão ter de responder – disse K. – Aqui estão os meus documentos, mostrem-me agora os vossos e, antes de tudo, o mandado de prisão.
– Ó meu Deus! – disse o guarda. – Como é incapaz de adaptar-se à situação e parece determinado a irritar-nos inutilmente, a nós que, entre todos os outros, somos sem dúvida os mais próximos de si!
– Ele tem razão, creia – disse Franz que, em vez de levar à boca a chávena de café que segurava na mão, lançou a K. um olhar que talvez quisesse dizer algo, mas incompreensível.
Trocou involuntariamente vários olhares com Franz, depois, e apesar disso, começou a desdobrar os seus documentos enquanto dizia:
– Aqui estão os meus documentos de identidade.
– Que quer que façamos com eles? – exclamou então o guarda alto. – O seu comportamento é pior do que o de uma criança. Que pretende então? Quer apressar o fim do seu maldito grande processo, discutindo a identidade e o mandado de prisão conosco, os guardas? Somos apenas funcionários, quase incapazes de nos entendermos com documentos de identidade e cujo único elo com o seu caso é ficarmos de guarda dez horas por dia à sua casa, sendo pagos para isso. Eis tudo quanto somos; todavia, somos capazes de perceber que as altas autoridades que servimos, antes de ordenarem uma tal detenção, se informam pormenorizadamente dos motivos da prisão e da pessoa do acusado. Não existe erro possível. As autoridades de que dependemos, tanto quanto as conheço, e apenas conheço os escalões mais baixos, não são do gênero de ir procurar a culpa no seio da população; pelo contrário, como diz a lei, é a culpa que as atrai, e elas devem então mandar-nos, os guardas. É a lei. Onde poderia haver erro?
– Ignoro tal lei – disse K.
– Tanto pior para si – disse o guarda.
– Ela só existe, sem dúvida, nas vossas cabeças – disse K., que queria descobrir, de uma maneira ou de outra, os pensamentos dos guardas, desviá-los a seu favor ou dominá-los.
Mas o guarda ignorou simplesmente a sua observação, dizendo:
– Há-de sentir-lhe os efeitos.
Franz interveio então:
– Estás a ver, Willem, que ele reconhece que ignora a lei, e afirma ao mesmo tempo estar inocente…
Publicidade, dever de motivação e submissão ao controle jurisdicional, de resto decorrências do princípio do Estado de Direito, impõem a que a Fazenda junte ao processo, sim, a cópia do processo administrativo que gestou o ato impugnado em juízo. Presumir que com isso estaria “produzindo prova contra si”, algo que a ordem jurídica lhe permitiria não fazer, é algo contrário à própria presunção de validade do ato administrativo, tão invocada pela jurisprudência para manter atos praticados pelo Poder Público diante de insuficiência do acervo probatório trazido pela parte adversa. Afinal, ele só se presume válido se seus motivos forem públicos, a fim de que sejam contrastáveis com o que dispõem as normas jurídicas e se possa realizar o controle dessa validade, cuja presunção é apenas relativa.
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