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NOVO CPC
PROCESSO CIVIL
Novo CPC: Precedentes e contraditório
23/11/2015
O sistema de precedentes é provavelmente a menina dos olhos do Novo CPC. Muda a forma pela qual enxergamos a isonomia no processo civil, exigindo que casos análogos tenham soluções análogas pelos diferentes órgãos jurisdicionais [1].
É bem verdade que seria ingenuidade de nossa parte pensar que o Novo CPC inventou o sistema de precedentes no direito brasileiro. Nenhum ordenamento jurídico que vise à segurança jurídica e à democracia desconsidera seus precedentes e fomenta, de modo geral, uma desvinculação total e absoluta ao que previamente já se decidiu.
Aqui os precedentes sempre tiveram eficácia, muito embora essa eficácia tenha sido tratada como algo de natureza meramente persuasiva. Os tribunais seguem seus julgados, bem como os julgados de órgãos superiores, pois estes são (i) referência para uma adequada compreensão do direito positivo; (ii) referência objetiva para a conduta dos indivíduos, fomentando segurança jurídica e previsibilidade [2].
Sempre seguimos precedentes e isto sempre foi fundamental, muito embora, ao menos até a reforma Judiciário de 2005, não tivéssemos norma jurídica (no período republicano) que cominasse a obrigatoriedade de os órgãos jurisdicionais vincularem-se horizontalmente (precedentes de um mesmo tribunal) ou verticalmente (precedentes de órgãos hierarquicamente superiores) à ratio decidendi de casos anteriores.
O problema é que, exatamente por não termos a generalização de precedentes vinculantes, nós, operadores, sempre tivemos um certo desleixo ao invocar e utilizar precedentes. Por serem meramente persuasivos, os precedentes eram confundidos com ementas, alegados preguiçosamente em petições e usados de modo aleatório e pouco racional para a fundamentação das mais diversas decisões judiciais.
Esta situação sequer se alterou quando a Constituição Federal passou a prever a “vinculatividade” dos precedentes formados no controle de constitucionalidade, ou mesmo quando o CPC de 1973 estabeleceu técnicas que pressupunham a adequada utilização dos precedentes, como a improcedência liminar (CPC73, art. 275-A), súmula impeditiva de recursos (CPC/73, art. 517), julgamento monocrático (CPC73, art. 557) e técnicas de julgamentos de recursos repetitivos (CPC73, art. 543-C).
Continuamos absolutamente incapazes de adentrar às especificidades do julgado, identificar a ratio decidendi (podendo inclusive existir mais de uma num mesmo julgado) e diferenciá-la dos ditos de passagem e de todo o restante da motivação que não é determinante para a fixação do comando decisório (obter dictum).
É dizer, muito embora os precedentes tenham passado a serem ainda mais importantes em nossos sistema, continuamos a tratá-los com desprezo, deixando de estabelecer no processo um efetivo contraditório que coloque em discussão aquilo que é absolutamente fundamental: saber se dois casos diferentes reúnem suficientes características comuns, de modo que a razão de decidir de um caso possa se aplicar ao outro.
Talvez diante do conhecimento desse problema, e exatamente porque evoluiu profundamente na determinação legal de precedentes vinculantes (de seguimento obrigatórios pelos demais órgãos jurisdicionais) na redação do art. 927 [3], o Novo CPC preocupou-se em valorizar esta sorte de discussão.
E como sempre sobrou – pelo menos em primeiro lugar – para o juiz, com mais trabalho e complexidade na sua atuação. Toda vez que a parte invocar precedente o juiz somente poderá deixar de adotá-lo como linha de seu julgamento, caso efetivamente – na motivação do ato decisório – estabeleça que as circunstâncias fáticas do caso analisado sejam fundamentalmente distintas daquelas analisadas quando da formação do precedente invocado, ou mesmo (e agora em casos mais excepcionais, não podendo ser realizada por órgãos hierarquicamente inferiores) o juiz esclareça a ocorrência de alterações sociais relevantes que não mais permitam a adoção do precedente.
Vejamos a redação dos incisos V e VI do § 1º do art. 489 do Novo CPC:
Art. 489 (…). § 1o Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: (…) V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.
Ora, é mais um dever para o juiz, embora não possamos negar que se trata de dever fundamental e que não se pode usar precedentes sem exercício desta natureza no processo: o juiz tem que saber fundamentar conforme precedentes e não pode mais julgar preguiçosamente, pautando-se apenas na citação de ementas, as quais – quase sempre – são incapazes de ressaltar as efetivas circunstâncias fáticas do julgado.
Agora, a questão é: e a parte (e seu patrono) pode continuar a litigar preguiçosamente, com base no “ementismo”? Muda para o juiz, mas não muda nada para as partes e advogados? Basta a parte citar uma ementa que isto fará com que surja para o juiz o trabalhoso dever de fundamentar conforme os incisos V e VI do § 1º do art. 489 do CPC, apenas para afastar o precedente?
Entendemos que não! O surgimento deste dever específico de motivação para o juiz pressupõe a maturidade no contraditório para parte, imposta pela noção de processo cooperativo (NovoCPC, art. 6º) [4].
A parte têm o ônus argumentativo de alegar adequadamente o precedente, indicando as circunstâncias fáticas que justificam sua aplicação ao caso concreto e, excepcionalmente, os motivos que justificariam a superação de precedente em tese aplicável.
O sistema do CPC de 1973 convive com ônus dessa natureza, nas hipóteses de interposição de recurso especial pautado em divergência jurisprudencial (CPC73, art. 541, parágrafo único). O que faz o Novo CPC, com a cooperação, é exigir esse mesmo ônus argumentativo de todos aqueles que litigam como base em precedentes, sob pena de eximirem o juiz do mesmo trabalho quando da sua decisão pela inaplicabilidade da “ementa” invocada pela parte.
Caso a parte alegue dezenas de ementas, sem fazer qualquer sorte de “cotejo analítico” entre precedente e caso concreto, o juiz estará simplesmente autorizado a afastar a incidência dos precedentes sem qualquer fundamentação. Não precisará seguir os incisos V e VI do § 1º do art. 489. O descumprimento do ônus argumentativo da parte exime o juiz de fundamentar a recusa do precedente. E, ainda, caso o juiz queira usar precedente invocado indevidamente para decidir ou mesmo precedente não alegado pela parte, deverá, nos termos do art. 10 do Novo CPC, intimar as partes para fazerem o “cotejo analítico”, dando-lhes oportunidade para um contraditório mais adequado, exatamente como determina § 1º do art. 927.
O juiz e as partes são sujeitos do contraditório e, portanto, deve haver simetria nos encargos estabelecidos relativamente ao diálogo processual. Não faz sentido se exigir motivação do juiz se, antes, o contraditório não tenha se estabelecido relativamente a estas circunstâncias, cabendo – não apenas ao juiz, mas também às partes e aos advogados – uma significativa mudança de postura frente à argumentação pautada em precedentes.
[1] Zulmar Duarte já se manifestou nesta coluna a respeito dos contornos gerais do sistema de precedentes do Novo CPC https://www.jota.info/precedentes-no-novo-cpc-fast-food-brasileiro
[2] A respeito da ingenuidade do “civil law” em subestimar a relevância dos precedente, cf. Thomas Bustamente, “A dificuldade de se criar uma cultura de argumentativa do precedente judicial e o desafio do Novo CPC”, in Didier Jr et al. (org). Precedentes. Salvador: JusPodivm, 2015.
[3] Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II – os enunciados de súmula vinculante; III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
[4] Já tivemos a oportunidade de delinearmos os contornos gerais da cooperação em artigo nesta mesma coluna https://www.jota.info/novo-cpc-principio-da-cooperacao-e-processo-civil-do-arco-%C2%ADiris