32
Ínicio
>
Novo CPC
>
Processo Civil
NOVO CPC
PROCESSO CIVIL
Privilégios processuais dos cartórios extrajudiciais
28/09/2015
A defesa de interesses da classe, de corpo, da categoria, é uma constante em todo e qualquer processo legislativo. O lobby é parte natural do jogo político. Compete ao parlamento, dentro do justo e razoável, filtrar as demandas coorporativas, acolhendo-as, apenas, nos casos em que houver coincidência entre os interesses do grupo e do país. Quanto melhor é o parlamento, quanto mais avançado é o regime democrático de uma nação, menor é o poder de grupos econômicos e entidades de classe na obtenção de privilégios legais.
Durante o tramitar do processo legislativo que culminou no advento do NCPC (Lei 13.105/2015) várias vozes falaram.
Algumas falaram mais alto, como é o caso da Ordem dos Advogados do Brasil, cujas vindicações, em grande parte justas, foram prestigiadas no NCPC (prazos em dias úteis, suspensão de prazos no fim de ano, etc.).
Justeza, todavia, não encontrada no atendimento a reclamos de outros grupos como o das serventias extrajudiciais.
De fato, há dispositivos do NCPC que configuram insustentáveis e odiáveis privilégios processuais deste grupo. A impressão que se tem é que as serventias extrajudiciais, quando lhes convém, foram tratadas pelo NCPC como entes privados, como exercentes de atividade empresarial (a ver o art. 98, § 8º, do NCPC). Mas quando não lhes convém, o tratamento foi de órgão do Estado (vide o art. 782, XI, do Novo CPC).
A ver.
Garantiu-se às serventias notariais ou de registro, para a ação de reparação de dano por ato praticado em razão do ofício, o direito de serem demandadas no foro do lugar onde está sua sede (art. 53, III, “f”, do Novo CPC).
O dispositivo está inserido no art. 53 do Novo CPC (equivalente ao art. 100 do CPC/1973), destinado, preponderantemente, a fixar regras especiais de competência territorial fundadas na hipossuficiência de uma das partes da relação (incapazes, idosos, etc.).
Contudo, não parece que o hipossuficiente da relação seja a serventia extrajudicial. O favor legal de poder demandar em seu domicílio deveria ser do jurisdicionado prejudicado pelo “mal feito” da serventia, não do serviço delegado.
Além disso, entes que efetivamente seriam merecedores do favor legal da competência, inclusive porque sem fins lucrativos, não foram contemplados pelo NCPC (art. 53). Santas Casas (hospitais), entidades benemerentes, associações civis, ONGs, sequer foram imaginadas como destinatárias da proteção legal. Qual a lógica das serventias gozarem da proteção e entes efetivamente hipossuficientes não gozarem de idêntico tratamento?
Há mais.
O art. 98, IX, do Novo CPC deixa expresso, tanto quanto já é no sistema hoje vigente (Lei 1.060/50), que o direito à gratuidade judiciária compreende, entre outras rubricas, os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.
Até aqui tudo dentro da mais absoluta normalidade, considerando que as serventias extrajudiciais são delegadas de atividade do Estado, de modo que competindo a ele garantir acesso à Justiça em sentido lato (art. 5º, LXXIV, da CF), natural que tal dever se estenda, também, àqueles que exerçam a atividade em seu nome (inclusive auferindo lucro com isso).
O problema é que o § 8º do dispositivo garante às serventias extrajudiciais um poder que nem o próprio Estado (Fazendas) tem no tocante às custas processuais (taxa judiciária). Quando da prática do ato gratuito, o notário/registrador, sem critério objetivo algum (“dúvida fundada quanto ao preenchimento atual dos pressupostos para a concessão da gratuidade”), pode impugnar a gratuidade judiciária concedida judicialmente postulando sua revogação (total ou parcial), ou mesmo a sua substituição pelo parcelamento dos emolumentos na forma do art. 98, § 6º, do Novo CPC.
Pior: tal requerimento será dirigido pela serventia extrajudicial ao “juiz competente para decidir questões registrais ou notariais”, isto é, o juiz corregedor permanente da serventia extrajudicial, que notoriamente exerce atividade administrativa (não jurisdicional).
Ou seja, o NCPC cria uma aberração: a possibilidade de uma decisão jurisdicional concedente da gratuidade, talvez proferida até por um Tribunal Superior, ser revogada ou modificada por uma decisão administrativa de juiz diverso do da causa onde concedida a benesse!
Incompreensível.
E nem se sustente que o dispositivo em comento (art. 98, § 8º, do NCPC) é consentâneo com o ideário de contraditório pleno do Novo CPC, inclusive em favor de terceiros alcançados por decisões proferidas em processo alheio (arts. 9º e 10); que a atividade empresária da serventia extrajudicial não pode ser afetada por um surto de benemerência judicial na concessão da gratuidade judiciária.
A uma, porque se fosse para admitir esse contraditório em prol das serventias, ele deveria se dar perante o próprio juízo que concedeu a gratuidade – na forma do ainda vigente art. 12 da Lei 1.060/50 (art. 98, § 3º do NCPC) –, evitando-se o inconveniente de decisão administrativa revogar/modificar decisão judicial.
A duas, visto que a serventia extrajudicial age em nome do Estado, de modo que se o Estado/Juiz concedeu a benesse, não faz sentido que órgão do próprio Estado (delegado) possa se insurgir contra os efeitos da decisão daquele.
A três, pois que ao aceitar a delegação, o particular que a recebe já conhece as regras que garantem a gratuidade, devendo considerar que os emolumentos que receberá, como o todo, suportarão, inclusive, a prática destes atos gratuitos.
E a quatro, em razão de o próprio NCPC já prever – de modo altamente benéfico às serventias -, que, observada a tabela e as condições da lei estadual ou distrital respectiva, aplica-se o disposto no art. 95, §§ 3º a 5º, do NCPC, ao custeio dos emolumentos previstos no art. 98, § 1.º, IX, do NCPC, i.e., as serventias receberão do Estado pela prática dos atos em prol dos beneficiários da gratuidade judiciária (art. 98, § 7º, do NCPC).
Atente-se: o privilégio se torna ainda mais explícito e inexplicável quando se observa que as Câmaras de Mediação e Conciliação privadas terão de suportar, graciosamente, a realização de audiências de partes beneficiárias da gratuidade judiciária (art. 169, § 2º, do NCPC). Só que sem a benesse de receber do Estado por isso, ou mesmo de poder impugnar a gratuidade judiciária concedida, tal como conferido às serventias extrajudiciais.
Há, ainda, o benefício do art. 782, XI, do NCPC, que considera título executivo extrajudicial a certidão expedida por serventia notarial ou de registro, relativa a valores de emolumentos e demais despesas devidas pelos atos por ela praticados, fixados nas tabelas estabelecidas em lei.
Aqui se vê o reconhecimento da natureza pública, quase que estatal, das serventias extrajudiciais, com o poder equivalente ao do Estado de cobrar, por execução, os próprios créditos.
Poder que, por outro lado, não foi conferido a um sem número de situações em que o crédito merecia uma proteção maior que a da serventia extrajudicial (como no caso dos créditos hospitalares).
Enfim.
O potencial das serventias extrajudiciais em colaborar com a administração da Justiça é enorme, conforme, aliás, reconhece o próprio Novo CPC ao disciplinar a questão das atas notariais (art. 381), da extrajudicialização do penhor legal (art. 701) e da usucapião (art. 1.067).
E as vantagem processuais conquistadas pelas serventias extrajudiciais no NCPC – reconhece-se –, foram feitas às claras, diretamente no parlamento, de modo absolutamente lícito e em ambiente democrático.
Entretanto, compete à academia chamar a atenção dos operadores do processo para o tratamento processual privilegiado das serventias extrajudiciais no NCPC.
Até para que possa ser iniciado o debate sobre a compatibilidade destes privilégios processuais com a razoabilidade e a isonomia prometidas pela Constituição Federal.