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NOVO CPC
PROCESSO CIVIL
A problemática compatibilização do novo CPC com os juizados especiais
Fernando Gajardoni
11/01/2016
Mesmo antes da Constituição Federal de 1988 o Brasil já se preocupava em disciplinar, de modo diferenciado, o tratamento processual a ser dado às causas de reduzido valor econômico. Compreendia-se, sob a ótica das “ondas renovatórias” de Garth/Cappelletti[1], que um modelo de acesso à justiça dependia, necessariamente, da existência de mecanismos oficiais capazes de solucionar rapidamente, sem custos ou com custos reduzidos, e sem pretensão de alcançar a decisão mais justa e perfeita, conflitos banais, ordinários, de menor complexidade, do cidadão comum.
A Lei 7.244/1984 introduziu no país os Juizados de Pequenas Causas e, com ele, o ideário de simplificação, facilitação do acesso e, por conseguinte, de aproximação do jurisdicionado do Poder Judiciário (Justiça Comunitária). Conforme tantas vezes apontado pelo Prof. Kazuo Watanabe, um dos mentores da lei, no sistema dos Juizados de Pequenas Causas todo cidadão teria o direito não só ao seu “day in court”, mas também a um processo, informado pelos princípios de celeridade, simplificação e oralidade, conduzido e decidido sem os rapapés e rococós ordinariamente empregados por advogados e juízes na Justiça Comum.
Nasceu a CF/1988 e com ela o comando do art. 98, I, no sentido de que deveriam ser criados Juizados Especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade, mediante procedimento oral e sumaríssimo, permitindo-se, ainda, o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
Foi o momento para que a lei 7.244/1984 fosse substituída e aperfeiçoada pela Lei 9.099/95 (Juizado Especial Cível) – depois amplificada pelas Leis 10.259/2001 (Juizado Especial Federal) e 12.153/2009 (Juizado Especial da Fazenda Pública) –, que mantendo o mesmo ideário dos Juizados de Pequenas Causas, apostou em um modelo processual para as causas de menor valor (40 s.m. no JEC e 60 s.m. no JEF e JEFP) fundado na oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação. Algo admissível e recomendável em virtude da pequena complexidade ou do diminuto valor da controvérsia.
Mesmo com os conhecidos problemas estruturais e de operacionalização prática do sistema dos Juizados (taxa de congestionamento em elevação, não implantação da figura do juiz leigo em vários Estados, ausência de conciliadores/mediadores capacitados, etc.) – e tirante uma ou outra crítica infundada de cunho puramente acadêmico[2] -, após 20 anos de vigência da Lei 9.099/95, são inegáveis os resultados positivos alcançados pelos Juizados Especiais.
A absoluta maioria dos jurisdicionados e advogados confiam no Sistema dos Juizados, a ponto de os JECs, cujo acesso é facultativo, responderem, atualmente, por 27% dos 17,6 milhões de casos novos que chegam ao Judiciário Estadual (4.804.855 processos); sendo que nos JEFs (cuja competência é absoluta onde instalados) a quantidade de casos novos passou o número de casos registrados pela Justiça comum federal: 1,3 milhão (quase 60% da demanda total).[3]
O ano de 2016, todavia, é crucial para a preservação do sucesso dos Juizados. Em março/2016, entra em vigor o Novo Código de Processo Civil, que tem importantíssima aplicação subsidiária aos Juizados Especiais Cíveis, Federais e da Fazenda Pública.
Sem prejuízo de alterações pontuais promovidas pela própria Lei 13.105/2015 na lei 9.099/95[4] – e a cujo respeito não há dúvida sobre a aplicação –, é real o risco de que, deixando-se influenciar por uma série de outras regras do Novo CPC, percam os Juizados aquilo que eles têm de mais valioso: a simplicidade, a oralidade e a eficiência.
Pois por expressa disposição legal (art. 1.062, CPC/2015), aplica-se aos Juizados o bom regramento do CPC/2015 sobre o incidente de desconsideração da personalidade jurídica (arts. 133 a 137 do CPC/2015). O problema é que o processo nos Juizados nasceu para ser simples, sem intervenção de terceiros (art. 10 da Lei 9.099/95) e sem incidentes paralelos que pudessem burocratizar o seu desenvolvimento. Além disso, a previsão trouxe a reboco questão prática de difícil solução: o CPC/2015 fala em cabimento de agravo de instrumento contra a decisão que julgar, com ares de coisa julgada, o incidente de desconsideração (art. 1.015, IV, CPC/2015). Mas, como regra, não é admitido agravo no procedimento dos Juizados.
O art. 985, § 1º, do CPC/2015, estabelece que uma vez julgado o incidente de resolução de demandas repetitivas, a tese jurídica será aplicada a todos os processos individuais e coletivos que versem sobre questão idêntica e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive as que tramitem nos Juizados. Regra coerente, que dá integridade ao sistema, mas que – conforme já advertido por um dos autores desta coluna (https://blog.grupogen.com.br/juridico/2015/01/05/incidente-resolucao-demandas-repetitivas/) –, padece de inconstitucionalidade por sujeitar os Juizados Especiais às decisões dos TJs/TRFs/STJ, embora, constitucionalmente, não subordinados jurisdicionalmente a eles.[5]
O Novo CPC, de modo adequado, disciplina a questão da fundamentação das decisões judiciais no art. 489, § 1º, dando concretude, através de inteligente fórmula negativa (indicativa das situações em que uma decisão não é fundamentada), ao art. 93, IX, da CF. A aplicação aos Juizados Especiais do regramento lá contido, todavia – especialmente na situação do art. 489, § 1º, IV, que determina o enfrentamento de todas as questões que, em tese, poderiam infirmar a conclusão adotada pelo órgão julgador -, é duro golpe contra a celeridade e simplicidade do processo oral e sumário dos Juizados. O enfrentamento de todas as questões impede a consecução do ideário de que, nas causas em curso nos Juizados, as decisões são tomadas informalmente, “na ponta do martelo”, com fundamentação sucinta, breve. Os Juizados não nasceram para fazer doutrina, tampouco para o desenvolvimento das principais teses que informarão a construção da jurisprudência ou do sistema de precedentes do direito brasileiro. Por isso – e até como mecanismo de proteção da viabilidade e eficiência do sistema dos Juizados –, já se sustenta a não aplicabilidade do dispositivo nos Juizados, especialmente se considerado que há disciplina própria da questão na Lei 9.099/95 (art. 38).[6]
Os arts. 300 a 310 disciplinam as tutelas de urgência no Novo CPC. Disciplina com grandes novidades, como a admissão da tutela antecipada antecedente (art. 303) e sua estabilização (304). Dispositivos, todavia, absolutamente incompatíveis com modelo informalizado e funcional do Sistema dos Juizados Especiais. Primeiro porque há disciplina própria do tema nas Leis 10.259/2001 (art. 4º) e 12.153/2009 (art. 3º), a afastar a subsidiariedade do CPC/2015. E segundo, porque não cabendo agravo das decisões proferidas em sede de Juizados, não há como o réu, o maior prejudicado pela estabilização da tutela antecipada, impedi-la, nos termos do art. 304, caput, CPC/2015.
O sistema recursal do CPC/2015 é rico, tendo ampliado as hipóteses de sustentação oral, criado antídotos contra a jurisprudência defensiva, mas contraditoriamente mantido o efeito suspensivo automático da apelação (arts.994 e ss., CPC/2015). Porém, é incompatível com o sistema recursal dos Juizados, cuja regra de funcionamento é bastante simples: da sentença cabe recurso inominado para o próprio Juizados, sem efeito suspensivo automático, no qual podem ser impugnadas todas as questões decididas no curso do processo (art. 41 e ss. da Lei 9.099/95). Qualquer tentativa de fazer incidir o CPC/2015 nesta temática contraria a regra da subsidiariedade.
Apesar de todos o exposto, e pese o nobre propósito de proteger o Sistema dos Juizados do modelo processual (muito) mais complexo e formal introduzido pelo Novo CPC, parece não ser o caso de sustentar a não aplicação do CPC/2015 aos Juizados[7]. É inegável que há no CPC/2015 várias disposições inspiradas nos princípios informadores do art. 2º da Lei 9.099/95 e que, por guardarem fina sintonia com os propósitos de aceleração, simplicidade e efetividade do Sistema, devem valer nos processos em curso nos Juizados.
Exemplificativamente, é o caso da regra que admite o julgamento liminar de improcedência do pedido (art. 332 CPC/2015); da que determina o respeito aos precedentes (arts. 926 e 927 CPC/2015), inclusive dos próprios Colégios e Turmas Recursais e de Uniformização de Jurisprudência; da que dispensa a avaliação de veículos automotores ou de outros bens cujo preço médio de mercado possa ser conhecido por meio de pesquisas realizadas por órgãos oficiais ou anúncios de vendas divulgados nos meios de comunicação (art. 871, IV, CPC/2015); da que autoriza o juiz a flexibilizar o procedimento ampliando prazos e invertendo a ordem de produção de provas (art. 139, VI, CPC/2015); da que autoriza as partes a celebrarem, dentro das condicionantes estabelecidas em lei, convenções sobre rito e situações jurídicas processuais (art. 190 CPC/2015); da que admite a distribuição do ônus da prova (art. 373, § 1º, CPC/2015); etc. Todas aplicáveis aos Juizados.
O CPC/2015, portanto, terá aplicação ao Sistema dos Juizados Especiais. Porém, considerando princípio da especialidade, apenas: a) nos casos de expressa e específica remissão; ou b) na hipótese de compatibilidade do regramento do CPC/2015 com os critérios previstos no art. 2º da Lei 9.099/95 (o que deve ser analisado casuisticamente).
Por fim, uma confissão de receio. Receio de quem sabe sim pensar o novo. Mas com olhos na realidade, no interesse do jurisdicionado e na funcionalidade do Sistema de Justiça.
Já há movimento na academia pela elaboração de uma nova Lei dos Juizados Especiais, “dando-se aos juizados Especiais Cíveis, aos Juizados Especiais Cíveis Federais e aos Juizados Especiais da Fazenda Pública tratamento compatível com o CPC de 2015 e com as mais modernas conquistas do Direito Processual Civil brasileiro”[8].
Se a nova lei vier para potencializar os princípios informadores do Sistema dos Juizados (art. 2º da Lei 9.099/95), incorporando ao texto legal alguns dispositivos do CPC/2015 compatíveis com eles; se vier para restabelecer o ideário inaugural dos Juizados como “Justiça do cidadão”, afastando de seu albergo a possibilidade, hoje existente, de ajuizamento de demandas por empresas de pequeno porte e microempresas (art. 8º, II, da Lei 9.099/95); se vier potencializar a competência material dos juizados, permitindo que causas outras, hoje fora de sua competência (direito de família, por exemplo), sejam solucionadas pelo processo oral, célere, sem custos, com poucos recursos e de acesso direto pelo cidadão; que seja MUITO BEM VINDA a nova lei.
Agora se o processo legislativo, a pretexto de incorporar ao texto legal as “conquistas” do CPC/2015”, servir para que o Poder Público e as grandes corporações ordinariamente acionadas nos Juizados (instituições financeiras, concessionárias de serviço público, etc.) consigam se livrar do alcance deles; se objetivar, tal como acabou por fazer o CPC/2015, dar fim à oralidade ou ampliar o número de recursos e ações impugnativas; se ceder às pressões corporativas e limitar a possibilidade de o jurisdicionado, diretamente, sem a participação de advogado ou pagamento de custas, demandar perante os Juizados; então que FIQUEMOS VIGILANTES, pois há risco de termos, também nos Juizados, um sistema ordinarizado e nada diferente do que atualmente se tem na Justiça comum.
[1]Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Ed. Sergio Antonio Fabris: Porto Alegre, 1988.
[2] A provar: “O que se vê inconstitucional são os juizados especiais que, operados em contraposição a direitos fundamentais de defesa, são lenitivo que, a teor de Luhmann, Carnellutti e Rawls, oferecem uma justiça e paz sistêmicas como biombo ideológico de solução caricata de conflitos sociais por uma assembleia de especialistas cravados na cultura tópico-retórica de uma jurisprudência repressora. Pereniza-se por essa estratégia judicante a máxima aristotélica tão cara à discriminadora e elitista polys grega (hoje Sociedade Civil) de se dever tratamento igual a iguais e desigual a desiguais, uma aceitação desvairada (pressuposta) de um desequilíbrio fatal e estrutural da humanidade negativo da garantia de direitos fundamentais já atualmente recepcionados na constitucionalidade democrática“ (Rosemiro Pereira Leal. Comentário a acórdão do STF. Boletim Técnico da Escola de Advocacia da OAB-MG, Belo Horizonte, v.1, n.1, p. 59-80, jan./jun.2004, p. 74).
[3] Relatório Justiça em Números – CNJ (2015).
[4] Vide os artigos 1.064 a 1.066 do CPC/2015, modificativos do regramento sobre embargos de declaração dos arts. 48, 50 e 83 da Lei 9.099/95, para que sejam cabíveis na identidade de situações do CPC/2015 (obscuridade, contradição e omissão), inclusive tendo o mesmo efeito interruptivo do prazo para outros recursos.
[5] Andre Roque. Abracadabra. Publicado em 15.01.2015. Disponível em: https://blog.grupogen.com.br/juridico/2015/01/05/incidente-resolucao-demandas-repetitivas/
[6] O entendimento da não aplicabilidade do art. 489, § 1º, do CPC/2015, aos Juizados, é fruto de enunciados aprovados no âmbito do FONAJE (Encontro Nacional realizado em BH entre 25 a 27.11.2015, ainda sem numeração) e da Escola Nacional de Formação de Magistrados – ENFAM (enunciado n. 47). Em sentido contrário, há enunciado do FPPC sustentando a aplicação (enunciado n. 309).
[7] Como recentemente fez a Min. Nancy Andrighi (Corregedora Nacional de Justiça) no seminário “O Poder Judiciário e o Novo CPC”, promovido pela Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM) (Brasília. 26.08.2015. http://www.enfam.jus.br/2015/08/500-magistrados-participam-de-seminario-da-enfam-sobre-o-novo-cpc/)
[8] Carta de Vitória. Fórum Permanente de Processualistas Civis (FPPC).