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A formação do conceito de bem-estar social
07/01/2020
A primeira vez em que tem lugar uma mudança na concepção da proteção ao indivíduo ocorre na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, que inscreve o princípio da Seguridade Social como direito subjetivo assegurado a todos: “Les secours publiques sont une dette sacrée”. Já se está diante do chamado liberalismo político, influenciado por movimentos de trabalhadores, o que vai acarretar a deflagração da ideia de previdência social, pública, gerida pelo Estado, com participação de toda a sociedade.
Com o desenvolvimento da sociedade industrial vai se obter um salto considerável em matéria de proteção social, com o reconhecimento de que a sociedade no seu todo deve ser solidária com seus integrantes, o que é ressaltado por Duguit:
O ser humano nasce integrando uma coletividade; vive sempre em sociedade e assim considerado só pode viver em sociedade. Nesse sentido, o ponto de partida de qualquer doutrina relativa ao fundamento do direito deve basear-se, sem dúvida, no homem natural; não aquele ser isolado e livre que pretendiam os filósofos do século XVII, mas o indivíduo comprometido com os vínculos da solidariedade social. Não é razoável afirmar que os homens nascem livres e iguais em direito, mas sim que nascem partícipes de uma coletividade e sujeitos, assim, a todas as obrigações que subentendem a manutenção e desenvolvimento da vida coletiva.[11]
No âmbito dos fatores que, segundo os estudiosos, teriam demarcado o caminho para o surgimento do Estado Contemporâneo, imprescindível iniciar-se com a Revolução Industrial e seus efeitos sobre a sociedade[12] e, a partir dela, em função do ideário liberal do Estado Moderno, fundado no individualismo e na liberdade contratual,[13] os problemas gerados pelo trabalho assalariado, pela concentração de renda, e o anseio por uma ruptura com aquele modelo marcado pela exploração do trabalho sem salvaguarda de espécie alguma.[14]
O aumento da marginalização social, pouco a pouco, estimulou convulsões sociais, acarretando o embate – muitas vezes sangrento – dos proletários com o aparato policial-estatal, pelos movimentos de trabalhadores. Assim, os cartistas,[15] na Inglaterra; as revoluções de 1848 e 1871, na França; a revolução de 1848, na Alemanha, representaram muito no despertar dos então governantes dos Estados para a intervenção e regulamentação na vida econômica.[16]
Os Estados da Europa, precursores da ideia de proteção estatal ao indivíduo vítima de infortúnios, estabeleceram, de maneira gradativa, da segunda metade do século XIX até o início do século XX, um sistema jurídico que garantiria aos trabalhadores normas de proteção em relação aos seus empregadores nas suas relações contratuais, e um seguro – mediante contribuição destes – que consistia no direito a uma renda em caso de perda da capacidade de trabalho, por velhice, doença ou invalidez, ou a pensão por morte, devida aos dependentes. Assim se define uma nova política social, não mais meramente assistencialista – está lançada a pedra fundamental da Previdência Social.
A distinção entre os conceitos de Seguro Social e Assistência Social é bem identificada por Augusto Venturi:
seguro e assistência, por suas naturezas e técnicas completamente diferentes, agem, em realidade, em dois planos completamente distintos. O seguro social garante o direito a prestações reparadoras ao verificar-se o evento previsto, antes que os danos possam determinar o estado de indigência, de privação, da pessoa golpeada. A assistência intervém, não de direito, mas segundo avaliação discricionária, somente quando, por causa de eventos previstos ou não previstos, esteja já em ato um estado de indigência, de privação, que ela tem o fim de combater.[17]
Na obra de Paulo Márcio Cruz admite-se como pioneiro da ideia de um “Estado Social” o jurista alemão Lorenz von Stein (1815-1890), a partir de sua obra “História do movimento social na França”, de 1850, logo após, portanto, ao Manifesto Comunista de Marx (1848). Stein teria defendido, então, reformas capazes de corrigir os problemas da sociedade industrial. “Este autor, defensor do modelo que corresponde ao que ele mesmo qualifica como ‘monarquia social’, argumenta a favor das reformas sociais institucionalizadas como instrumento para evitar as revoluções”.[18]
As origens de um pensamento dirigido ao modelo contemporâneo de Estado – Democrático – devem ser creditadas a Ferdinand Lassale, o qual teria inspirado a Social Democracia, com seus ideais de exigência do sufrágio universal, proteção trabalhista e “uma repartição mais igualitária do Poder político, social e econômico”, propostos no Programa de Gotha (1875) em contraponto ao pensamento socialista científico de Marx, “que insistia que todo Direito é um Direito desigual e que sua superação e a do próprio Estado só se produziria com a superação da Sociedade de classes, com o estabelecimento da Sociedade Comunista”.[19]
Importante papel desempenhou também o economista alemão Adolph Wagner, que formulou uma teoria econômica conhecida por “Lei de Wagner”, a qual “anunciou a progressiva transformação do Estado até o que o próprio Wagner define como ‘o Estado de bem estar e de cultura’, impulsionado por crescimento dos gastos públicos superiores ao crescimento da economia; criação de novas instituições dotadas de formas inovadoras de intervenção estatal; e a previsão de que a receita do Estado poderia ser obtida por um imposto progressivo sobre a renda”.20 Wagner, assim, “se tornava o centro de uma escola do socialismo do Estado, entendendo que entre os indivíduos e as classes de uma nação existe uma solidariedade moral, ainda mais profunda do que a econômica”.[21]
Costuma-se referir, ainda, à publicação da Encíclica Papal “Rerum Novarum” (no pontificado de Leão XIII), de 15 de maio de 1891, como um marco importante na caminhada rumo às mudanças que se deram nesse período. Por aquele texto, “reconhecia a Igreja a tremenda injustiça social dos nossos dias, acabando por aceitar e recomendar a intervenção estatal na economia como único meio capaz de dar cobro aos abusos do regime”.[22]
O advento da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) também pode ser considerado fator primordial na formação de um novo molde estatal. “Como acentua Leo Wolman, as consequências econômicas e sociais da Guerra Mundial foram causa de uma aceleração na marcha e possivelmente uma revisão nos próprios princípios da legislação social. O Estado interveio na questão do trabalho, por necessidade mesma de sobrevivência”.[23]
Por fim, no que tange aos fatores sociológicos de deflagração do Estado Contemporâneo, há que se frisar a Revolução Soviética de 1917, como sinal da grave ameaça imposta aos Estados Modernos liberais caso não se modificasse a estrutura da sociedade.24 Mas, também, indicava que:
A superação do liberalismo, começada pelos socialistas, foi, igualmente, obra dos movimentos de direita, como o fascismo e o nazismo. Destruídas, na II Grande Guerra, essas concepções totalitárias, não ressuscitou, porém, a ideia do Estado liberal. Ao contrário, o intervencionismo do Estado se foi acentuando cada vez mais (…). Nesse quadro, rapidamente esboçado, os discípulos do liberalismo recuaram: abandonaram a ideia do Estado liberal puro e admitiram que ele, sem deixar de ser democrático, pode e deve intervir, não apenas na organização, mas, igualmente, na direção do processo econômico-social.[25]
Assim, o que se percebe é que o surgimento do Estado Contemporâneo é produto de uma situação em que os detentores do poder, no afã de obter a manutenção de tal estado de coisas, e a partir dos movimentos sociais, num processo lento e gradativo, modificam a ação do Estado, que tende a interferir diretamente em determinadas relações privadas, inicialmente, como será visto, de modo específico no campo das relações de trabalho e na proteção social de indivíduos alijados do mercado de trabalho.
Todavia, o intervencionismo estatal toma as feições definitivas no período que vai da quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque, em 1929, ao período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Nesse período, surgem teorias econômicas aliadas a políticas estatais (como o New Deal norte-americano) que servirão de norte a profundas mudanças no molde estatal contemporâneo.
É nesse interregno que se irá cunhar, de forma indelével, a expressão Estado do Bem-Estar Social (Welfare State). Passava-se a entender que a proteção social era dever da sociedade como um todo, apresentando o caráter de solidariedade até hoje presente, pelo qual todos contribuem para que os necessitados de amparo possam tê-lo. Este conceito é fundamental para a noção de seguro social, já que sem o caráter de proteção de todos por todos, mediante a cotização geral dos indivíduos, não se pode falar em previdência social.
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[11] DUGUIT, Léon. Fundamentos do Direito. Trad. Márcio Pugliesi. São Paulo: Ícone, 1996, p. 16.
[12] CRUZ, Paulo Márcio. Poder, Política, Ideologia e Estado Contemporâneo. Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 217.
[13] “A igualdade e a liberdade, como conceitos abstratos, importavam na aceitação do conceito de Fouillé – ‘quem diz contratual, diz justo’ – e permitiam que se instituísse uma nova forma de escravidão, com o crescimento das forças dos privilegiados da fortuna e a servidão e a opressão dos mais débeis. Entregue à sua própria fraqueza, abandonado pelo Estado que o largava à sua própria sorte, apenas lhe afirmando que era livre, o operário não passava de um simples meio de produção” (SÜSSEKIND, Arnaldo [et al.]. Instituições de Direito do Trabalho. 14. ed. 1993, p. 34).
[14] Como bem resumem Evaristo de Moraes Filho e Antônio Carlos Flores de Moraes, “a suposta liberdade de contratar dos dogmas da Revolução Francesa, apesar dos nobres ideais que a inspiravam, degenerou na exploração do fraco pelo forte. A intervenção estatal significou o restabelecimento do equilíbrio rompido pelo liberalismo econômico. A partir de 1848, a grita doutrinária foi geral, sempre no sentido de, pelo menos, melhor justiça comutativa (contratual), já que não se podia alterar fundamentalmente a justiça distributiva da riqueza social” (MORAES FILHO, Evaristo de; MORAES, Antônio Carlos Flores de. Introdução ao Direito do Trabalho. 6. ed. rev. atual. São Paulo: LTr, 1993, p. 48.
[15] As trade unions (embrião dos sindicatos) inglesas, sob inspiração de Robert Owen, fundaram, em 1833, a “União Nacional Consolidada”, que chegou a reunir meio milhão de trabalhadores. Ela comandou a deflagração de uma série de greves, num movimento denominado “cartismo”, porque tinha por finalidade a conquista de direitos políticos e sociais do homem, expostos numa Carta elaborada entre 1837 e 1838 pelo movimento sindical (conforme SÜSSEKIND, Arnaldo. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 17).
[16] MORAES FILHO, Evaristo de; e MORAES, Antônio Carlos Flores de; Op. cit., p. 61.
[17] Apud CARDONE, Marly. Previdência, assistência, saúde: o não trabalho na Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 1990, p. 24.
[18] CRUZ, Paulo Márcio. Poder, Política, … cit., p 212.
[19] CRUZ, Paulo Márcio. Poder, Política, … cit., p. 145.
[20] CRUZ, Poder, Política, … cit., pp. 213-214.
[21] SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; e VIANNA, José de Segadas. Instituições de Direito do Trabalho. 14. ed. atual. São Paulo: LTr, 1993, v. 1, p. 38.
[22] MORAES FILHO, Evaristo de e MORAES, Antônio Carlos de op. cit., p. 62.
[23] Apud MORAES FILHO, Evaristo de e MORAES, Antônio Carlos Flores. Op. cit., p. 63.
[24] Vide CRUZ, Paulo Márcio. Poder, Política, … cit., p. 231.
[25] RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. 6. ed. rev. ampl. Curitiba: Juruá, 1997, p. 15.
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