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PENAL

Entrevista ao Conjur “Diante da briga de instituições em torno da delação, controle deve ser do Judiciário”

A LEI 12.853/2013

AÇÃO PENAL

AGENTE INFILTRADO

COMPORTAMENTO PÓS-DELITIVO

CRIME ORGANIZADO

DELAÇÃO ILICITA

DELAÇÃO PREMIADA

DIREITO PENAL

JUSTIÇA BRASILEIRA

JUSTIÇA NEGOCIÁVEL

OBTENÇÃO DE PROVA

Víctor Gabriel Rodríguez

Víctor Gabriel Rodríguez

19/07/2018

O Estado, com o uso cada vez mais frequente do instituto da delação premiada, está diante de dilemas na chamada “justiça negociável”. Essa “barganha” da pena provoca alterações importantes e perigosas no Direito Penal. É o que pensa Victor Gabriel Rodríguez, professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP.

Autor da livro Delação Premiada: Limites Éticos ao Estado, Rodríguez é livre-docente pela Universidade de São Paulo, membro do Programa de Integração Latino-Americana (Prolam/USP) e ex-assessor do ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal. Em 2016, foi professor convidado para o curso de doutorado na Universidad de Valladolid, na Espanha.

Em seu livro, Victor Rodríguez aponta o que chamou de “sete antinomias da delação premiada” e estuda as mudanças no Direito causadas com o perdão a um “traidor”. Para ele, há um custo humano na delação que não é levado em conta na Justiça brasileira, e falta credibilidade do Estado diante dos cidadãos para prometer prêmios.

“A questão de obtenção de prova é o de menos em todo sistema e a gente já está vendo isso se comprovando. É muito bom que você convença alguém a obter provas, o problema é que o Estado está abrindo mão de punir alguém, inclusive com a possibilidade de perdão. Quando isso acontece a gente tem uma quebra em todo o sistema penal.”

Leia a entrevista:

O livro argumenta que houve uma mudança de conceito com a delação premiada. Isso veio da lei?
Victor Gabriel Rodríguez —
 A Lei 12.853/2013, que trouxe o conceito de crime organizado, é resultado de uma pressão internacional para que se adote o sistema norte-americano de imputação penal e traz medidas para combater o crime organizado. Duas delas têm a mesma natureza, que são a possibilidade do agente infiltrado e a delação premiada.

ConJur — O Supremo Tribunal Federal entende que a delação é um meio de obtenção de prova. A norma já dizia isso?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 Sim. Mas há um problema, porque a questão de obtenção de prova é o de menos em todo o sistema. É muito bom que você convença alguém a obter provas, mas o Estado está abrindo mão de punir, inclusive com a possibilidade de perdão. Quando isso acontece, temos uma quebra em todo o sistema penal.

ConJur — E quais são as vantagens, então, para o Estado?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 A primeira vantagem é não ter que investigar. Ele chega na prova muito mais fácil, o que é muito bom, porque nos casos de corrupção, por exemplo, temos um ciclo fechado. São crimes de vítima difusa, nos quais você não tem uma pessoa vitimada. É o grande problema do tráfico de drogas também: tem alguém interessado em vender droga e alguém interessado em comprar. Esses dois nunca vão quebrar o ciclo de confidencialidade deles. Eu preciso do traficante, o traficante precisa de mim, então é muito difícil alguém denunciar. Geralmente quem vai denunciar é o traficante concorrente, e olhe lá.

ConJur — E essa estrutura pode ser quebrada com a delação?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 O Estado precisa de uma forma para entrar, e ele faz isso através do oferecimento de uma diminuição da pena para o delator. O problema é a medida disso, porque pode dar uma sensação de injustiça para a sociedade. Por exemplo, no passado, os escândalos de corrupção que tivemos foram de ex-mulher que denunciou, como no caso da Nicéia Pitta, o irmão do Collor, que deve ter sido deixado de fora do esquema. Tirando isso, a corrupção é um jogo de “ganha-ganha”. Ganha o corruptor, ganha o corrompido, perde a sociedade. Mas a sociedade não sabe do segredo, então o Estado entra por aí. Nesse ponto, a delação premiada é fenomenal.

ConJur — Mas então qual a desvantagem para quem delata?
Victor Gabriel Rodríguez —
 Em um país como o nosso, as desvantagens do delator são elementares de risco de vida. A lei da delação é elitista. Você vai ver muita gente denunciando corrupção do prefeito, a corrupção do senador, desde que não seja em um estado agrícola, onde o cara é coronel, por exemplo. Você não vai ver ninguém delatar um narcotraficante. Ele sabe qual vai ser a pena, ele não vai acreditar em um programa de proteção à testemunha latino-americano, que é uma piada.

ConJur — É o que o livro chama de custo humano da delação premiada?
Victor Gabriel Rodríguez —
 Exatamente. E, além disso, tem outra série de desvantagens, como a de consciência mesmo. Esse sistema vem de uma lógica utilitarista.

ConJur — Em que sentido?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 Utilitarismo é um sistema filosófico que vem do Jeremy Bentham, mas foi muito bem explicado pelo Max Weber. É a ideia de que você tem uma finalidade clara e que só deve agir de acordo com ela. A finalidade é ter um resultado, e o Estado pode adotar essa finalidade. O utilitarismo entrou pela cultura norte-americana de uma forma muito forte. Mas na nossa cultura romana, germânica e latino-americana, ele ainda causa muito choque.

ConJur — Por quê?
Victor Gabriel Rodríguez — 
Porque para você ter um Estado que perdoa, por exemplo, você tem que confiar muito nele. Nós, que saímos de uma ditadura nos anos 1980, não confiamos no Estado como o norte-americano ou o inglês confiam. Os Estados Unidos não mudam a Constituição deles desde o início e o Reino Unido vem de uma dinastia monárquica há séculos e séculos. Mas, para nós, é muito difícil confiar no Estado. Não que a delação premiada só dê margem para corrupção, mas você sempre vai se perguntar “por que essa pessoa foi perdoada? Onde que nós vamos chegar com a diminuição da pena desse sujeito?”

ConJur — Ou seja, a alteração no núcleo de valores do Direito, consequência da delação, resulta em conflitos sociais? Pode dar um exemplo concreto?
Victor Gabriel Rodríguez —
 O caso do Joesley Batista, por exemplo. Eu não posso opinar juridicamente, mas toda vez que tem um delator, o utilitarismo é bem claro, ele só pode delatar quem está acima dele em uma escala de poder na organização criminosa. Essa é a utilidade da lei e se o delator não cumpre isso, a delação não interessa. O que também gera um problema: por exemplo, o criminoso pobre não tem acesso à delação premiada. Um traficante pobre, um traficante pequeno, ele vai lá no promotor e diz “eu quero delatar”. “O que você tem para delatar?”, o cara vai perguntar. “Ah, eu acho que quem traz a droga é o senador tal.” O promotor vai falar: “Que prova você tem disso para mim?”, e ele vai dizer “nenhuma”. Porque, pela escala, ele, como pequeno traficante, não chega a ter uma reunião com o chefe. Eu não posso gravar o grande traficante, quer dizer, ele não tem acesso a isso.

ConJur — Então as delações partem do topo da hierarquia?
Victor Gabriel Rodríguez —
 Já partem de cima. Se três pessoas roubaram um banco e uma delas quer delatar o outro, o promotor vai falar que isso não interessa. Você tem que ser delator tipo o Joesley. O que aconteceu com a filmagem do Joesley? É claro que a população não verbaliza assim, mas vê-lo falar com o presidente da República mostra que ele está dando ordem para o sujeito. Não tenho as provas, mas essa é a ideia: ele cria o esquema, paga todo mundo, e aí ele delata. A população, quando o viu ganhar dinheiro com a operação, falou sobre isso.

ConJur — Foi uma delação ilegal? Hoje esse acordo é alvo de investigações e a Procuradoria-Geral pediu a rescisão da delação.
Victor Gabriel Rodríguez — 
Eu achei tremendamente lícito, não achei irregular. Regras são regras. Quando você senta para negociar o que era inegociável, que é a pena, então você tem que negociar. Enquanto ele negociava aqui, ele vendia as ações dele do outro lado, e ganhou dinheiro com isso. Sorte a dele. Quem chamou para negociar foi o Estado, então ninguém pode impedi-lo de ficar rico. Mas a população fica indignada, pensa “poxa, eu vejo esse cara fazer tudo, entregar todo mundo que ele deve ter cooptado”, muito provavelmente, repito, eu não tenho as provas, mas é o que a gente vê pela TV. “Olha, ele ficou rico, ele denuncia e ele se beneficia da própria delação”.

O Estado está diante de dilemas, o que chamo de “justiça negociável”, que é o que meu livro quer refletir. Não vou dar respostas, mas quero refletir uma a uma. Quando você tira a obrigatoriedade do sujeito de responder à pena você cai num mercado a que não estamos adaptados. No futuro a gente vai conseguir equalizar.

ConJur — De que forma esse instituto poderia ser mais bem aproveitado?
Victor Gabriel Rodríguez — 
Ele vai ser mais bem aproveitado no futuro, quando o juiz puder olhar e falar: não é assim. Por que eu estou perdoando o sujeito? Por que eu estou diminuindo a pena? E equalizar a delação premiada a outros institutos que a gente chama de comportamento pós-delitivo, como o arrependimento eficaz. São comportamentos que existem depois do cometimento do delito, mas que não conseguem absolutamente anular a pena. É o arrependimento que pode chegar a um sexto, a um terço da pena.

ConJur — Delegado de polícia deve ter autonomia para fechar acordos?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 Sem dúvida. Se está na lei, deve poder. A questão é se o acordo vai ser cumprido ou não. Ninguém vê o delator como um sujeito de direitos, um cara que tem moral de exigir. Se ele fecha uma delação com alguém que se apresentou como membro do Estado, para ele é o Estado ali. Quem propôs foi a autoridade que estava naquele momento. O problema é que, se eu sou delegado e decido prender o traficante da cidade, essa é a minha função. O promotor tem interesse em negociar para depois atingir quem não colabora com ele, mas essa não é a função dele, embora a lei permita. O juiz deve ter um papel maior.

ConJur — O que acha da disputa entre a PGR e a Polícia Federal?
Victor Gabriel Rodríguez — 
É natural que as instituições disputem em torno de um poder que não existia, de fazer barganha com a pena. É uma consequência da venda do Direito Penal. E aí é claro que as instituições vão ter a sua própria vaidade e qualquer uma vai querer puxar para si o poder. Diante dessa briga, o que eu defendo é que o Judiciário sempre controle tanto a Polícia Federal quanto o Ministério Público.

ConJur — Tem como tornar atraente a delação para combater crimes além dos de colarinho branco, levando em consideração que ela foi regulamentada com a intenção de combater o crime organizado?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 A única forma, que eu não confiaria, é que houvesse a extradição do delator, como na Colômbia, que os envia para os Estados Unidos.

ConJur — Por que a extradição?
Victor Gabriel Rodríguez —
 Porque não vai existir um delator das facções criminosas como o PCC. O que você quer destruindo o PCC? Apreender os chefes. Mas os chefes já estão todos presos. E o grande problema dessas facções é que elas nascem na cadeia, quanto mais você prende mais ela expande. Você vai delatar um Fernandinho Beira-Mar da vida? Por quê? Para aumentar a pena dele de 400 anos para 800? Então ainda que houvesse um delator para esse tipo de crime, é um caminho que além de não resolver o problema, vai gerar um risco de morte para a pessoa. E o nosso Estado não vai protegê-la.

Houve uma notícia após a morte de Marielle Franco, por exemplo, de que uma pessoa estava denunciando os possíveis assassinos. Com todo respeito, essa pessoa deve cumprir o dever dela de denunciar, mas ela merece proteção antes de aportar. Se ela efetivamente viu o crime de uma milícia e se as pessoas sabem que ela sabe, no Brasil que a gente está vivendo, ela já pode ser um cadáver ambulante. O Estado tem que defendê-la apesar da colaboração que ela vai dar. Se der, melhor. É triste, ela pode estar colaborando por medo de morrer. É muito complicado. Às vezes a pessoa também está com a vida por um fio. Não que seja o caso dessa pessoa, mas, por exemplo, um traficante que está jurado de morte talvez fale o que sabe pensando que seria protegido de alguma forma. São casos extremos.

ConJur — O posicionamento do Supremo, hoje, é o de que a delação é um instrumento da defesa. O que acha do entendimento?
Victor Gabriel Rodríguez — Reducionista, por dois motivos. A delação é um instrumento para a defesa poder cobrar o acordo, que é objetivo dela. Mas também é uma medida que envolve direitos de outros. Isso deve ser pesado, porque a delação é uma denúncia que pode ser injusta. O juiz tem de pensar nisso.

ConJur — Delatores podem ser orientados por procuradores e investigadores a produzir provas para garantir a assinatura do acordo?
Victor Gabriel Rodríguez —
 Não acho que seja ético, mas eles podem. É a garantia da pessoa. Vai que ela se arrisca e depois falam para ela que as provas não era o que queriam?

ConJur — Delator que mente deve perder os benefícios do acordo?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 A lei prevê isso. Mas temos que ver o “mentir” com muita parcimônia, porque, claro, o delator vai contar a versão dele, e o trabalho da defesa é exatamente esse. Se eu fosse o advogado faria a mesma coisa. Quando existem mais delações sobre um mesmo caso, é possível comprovar que o depoimento da pessoa é totalmente parcial.

ConJur — O mesmo advogado pode negociar vários acordos de delação diferentes?
Victor Gabriel Rodríguez —
 Não. Nisso a lei vai ter que entrar. Segredo é segredo. Mesmo que o advogado não conte sobre outro cliente, contamina. Mesmo que não seja conscientemente.

ConJur —  Uma ação penal aberta contra o ex-ministro Antonio Palocci tem sido usada como exemplo do uso de delações pelos investigadores da “lava jato”. Dos 14 réus, 13 são delatores e os 13 são testemunha em quase todos os processos da 13ª Vara Federal de Curitiba. Isso é legal?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 Legal não é. Mas vai caber a cada defesa observar o interesse de cada testemunha, porque elas podem ser pessoas que têm informações sobre outros casos, não apenas sobre o que delatou. E ninguém pode impedir um juiz ou um promotor de querer escutá-los. Uma pessoa condenada por homicídio, por exemplo, não pode ser ouvida como testemunha de outro caso? Pode. Agora, se o que eles vão falar é verdade ou mentira, ou o que podem estar acobertando, é um problema antigo no Direito Penal.

ConJur — As delações não podem ser também grandes jogos de poder aqui no Brasil?
Victor Gabriel Rodríguez — 
Claro, sem dúvida nenhuma. Eu não duvido de mais nada. Não estou acusando ninguém, mas você olha e fala “Por que ele?” Há um caso famoso, tem até um filme em que um mafioso delata a máfia siciliana exatamente para a máfia dele pegar o mercado da máfia concorrente. Coloca os chefes na cadeia, e ele está cometendo os mesmos crimes. “Não pediram para denunciar? Estou denunciando”. Nesse meio tempo, era a gangue dele que estava dominando o tráfico. Não lembro o nome do filme, mas é o jogo, é assim que as coisas funcionam.

ConJur — Existe alguma forma de blindagem contra esse tipo de manobra?
Victor Gabriel Rodríguez — 
 Não. Tá na mão da imprensa. É preciso ouvir cada um e falar “Espera aí, por que não vai atrás do outro?” A maioria dos servidores públicos está bem-intencionada, não tenho a menor dúvida disso, mas é preciso questionar.


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