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A subsistência da atividade registral no Brasil depende do SREI-ONR
Sérgio Jacomino
24/04/2018
No dia 7/4 tive a honra de entrevistar Renato Góes, profissional que atuou ativamente no Programa Cidade Legal e no Grupo de Trabalho “Rumos da Política Nacional de Regularização Fundiária” do Ministério das Cidades. Membro da Comissão de Mobilidade Urbana e Urbanismo do IASP é advogado, graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Araçatuba, pós-graduado em Direito Penal e em Interesses Difusos e Coletivos pela Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo, tendo exercido a função de Tabelião Substituto do 2º Tabelionato de Protesto de Campo Grande/MS (2006/2009). Renato é professor de Direito Notarial e Registral em turmas de pós-graduação e em cursos preparatórios para concursos. É um dos maiores especialistas em Regularização Fundiária do país.
Renato Góes não fugiu das questões provocativas e as respondeu com segurança e clareza.
Os profissionais que atuam na área dos registros públicos há muito vêm alertando para a necessidade de modernizar o sistema registral, assimilando as novas tecnologias de informação e comunicação.
Renato Góes não é exceção. Frequentador assíduo dos balcões de registros prediais, atuando em complexos processos de regularização fundiária, postulando a abertura de centenas de matrículas, é o primeiro a diagnosticar as limitações que o sistema atualmente apresenta.
Segundo ele, as recentes mudanças no sistema registral terão sido apenas a “informatização da máquina de escrever”. A praxe cartorária e os costumes cartoriais “continuam pautados na estrutura de outrora”, certamente aludindo à técnica de escrituração que remonta à década de 60 do século passado. “A salvação da atividade registral no Brasil” está no ONR, remata.
Confira sua entrevista abaixo.
Qual o papel dos registradores na regularização fundiária? ?
A REURB é política pública de desenvolvimento socioeconômico de nosso País; sem sua implantação e efetivação, estaremos fadados à pecha de país de terceiro mundo. Como é sabido, a REURB, na seara jurídica, esgota-se no Oficial de Registro de Imóveis. Logo, essencial a participação dos RI´s na sua efetivação. Indispensável a atuação conjunta do Oficial e do Poder Público Municipal no sentido de aconselhamento, interação, interpretação e compreensão para a realização de uma REURB célere. ?
Durante um longo período, a chamada “regularização fundiária” se limitava a intervenções de caráter urbanístico que culminavam com a entrega de um título administrativo que impedia o exercício pleno de disponibilidade pelo beneficiado (geralmente concessões administrativas ou direito real de uso). Gostaria que o Sr. pudesse comentar a inflexão representada pela Lei 13.465/2017, que privilegia a titularidade da propriedade plena. ?
Na verdade, o que “empodera” o ocupante de um espaço regularizado é, necessariamente, o reconhecimento de seu direito de propriedade. O direito real maior. Qualquer outro direito reconhecido ao ocupante, ainda que lançado no rol de direitos reais, tem suas limitações. Acertou o Legislador não por primar a titulação (como alguns, equivocadamente, alegam, pois, o artigo 46 da Lei 11.977 de 2009 já estabelecia a titulação como principal objetivo da regularização), mas por brindar a sociedade com o direito real de propriedade dentre as formas de titulação previstas em lei.
Há 3 ações diretas de inconstitucionalidade propostas contra Lei 13.465/2017[1]. Identifica-se certa resistência à figura da “legitimação fundiária”, considerada uma tergiversação à vedação legal de usucapião de áreas públicas. Como vê essas iniciativas?
As três ADI´s, na minha ótica, não buscam a defesa da ordem constitucional. Os promotores das ações diretas de inconstitucionalidade utilizaram-nas como forma de defesa ideológica. Os argumentos contrários ao título II da Lei 13.465, de 2017 (da REURB), quando presentes, são genéricos e facilmente superados e derrotados. A legitimação fundiária não fere a Constituição da República; ao contrário, atende-a. A legitimação fundiária auxilia a ordenação das cidades, prima pela função social da propriedade, busca a dignidade da pessoa e a moradia de qualidade, e, ainda, sequer atinge bens públicos, considerando-se como tal apenas aqueles que possuam uma destinação com tal natureza. ?
Outras figuras criadas pela Lei (direito de laje, condomínio de lotes, condomínio urbano simples) dividiram a doutrina, resistente à ideia de ampliação do rol de direitos reais ou a modificação do conteúdo desses direitos. Como o Sr. enxerga o fenômeno representado pelo acolhimento, no âmbito do direito civil, de demandas e necessidades sociais? ?
O Direito é o meio para consecução de um fim social. ? O Direito é instrumento para a convivência (pacífica) em sociedade. Natural (e essencial) que o direito se amolde às necessidades sociais, sob pena de perder sua força (e compreensão). Isso não quer dizer que ele deva ser adequado para reconhecer e tolerar como lícita toda conduta humana, mas sim que ele seja repensado e adequado quando necessário. Inconcebível imaginar que a evolução do homem ocorra em todos os sentidos e aspectos e, todavia, fique limitada às origens romanas na seara jurídica.
Na sua experiência profissional, quais aspectos representam os maiores obstáculos para a consumação da REURB? ?
O maior obstáculo à REURB é a ausência de vontade política. Nossos gestores ainda não enxergaram a importância desta política pública como um caminho ao desenvolvimento do Brasil. Ainda tratam a REURB como política pública habitacional, deixando-a, sempre, em segundo, terceiro, quarto plano de atuação e investimento (vide os orçamentos destinados à execução da REURB pelo Governo Federal e Estaduais).?
A titulação de centenas de milhares de imóveis ocupados vai demandar uma infraestrutura adequada para acolhimento dos títulos nos Registros de Imóveis de todo o país. Por essa razão, a lei previu que o “procedimento administrativo e os atos de registro decorrentes da REURB serão feitos preferencialmente por meio eletrônico” (arts. 37 a 41 da Lei 11.977/2009 cc. § 1º do art. 76 da Lei 13.465/2017). Para enfrentar esses novos desafios, a Lei previu a criação do ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis Eletrônico, igualmente combatida no STF. Como o sr. avalia o atual estágio de desenvolvimento tecnológico dos registros de imóveis e como vê a iniciativa de criação do ONR? ?
Os RI´s, com a devida vênia, estão aquém do avanço tecnológico necessário não só para recepção dos milhares de títulos derivados da REURB, mas também para a subsistência da própria atividade registral. Poucos são os Estados que iniciaram a estruturação do registro eletrônico; nenhum terminou. O que houve, na nossa opinião, foi apenas a “informatização da máquina de escrever”, pois os hábitos, praxes e costumes continuam pautados na estrutura de outrora que já não atende aos anseios da população, gerando desconhecimento (e, consequentemente, um descontentamento) sobre a importância da atividade notarial e registral nas nossas vidas. Acredito que a salvação da atividade registral no Brasil esteja no ONR. Somente um órgão, centralizador das boas práticas registrais e ocupado maciçamente por Oficiais de Registro, será capaz de criar um registro que atenda às necessidades de um futuro que já chegou nas outras atividades profissionais. ?
O governo baixou o Decreto 9.310/2018. O Sr. poderia comentar? ?
O Decreto 9.310, de 2018, dito de “regulamentação” da Lei 13.465, de 2017?, na nossa visão, nada regulamenta. Trata-se de cópia da integralidade da dita lei, com a inserção de parcos artigos que, s.m.j., contrariam o texto regulamentado. Criou-se uma grande expectativa com sua edição, no sentido de que ele pudesse aclarar e contribuir para a aplicação da REURB em território nacional, mas não se obterá esse resultado.
A regularização fundiária de imóveis localizados em áreas rurais apresenta problemas muito singulares. Em que medida a Lei 13.465/2017 poderá contribuir para fixar o homem no campo e resolver os problemas relacionados com as “favelas rurais”? ?
A priori, entendo que não. A Lei 13.465, de 2017, não resolverá o problema do êxodo rural e do surgimento do conflito de terras, pois, criar mecanismos para a titulação da área rural, por si só, nada resolve. Falta-nos uma política pública da pequena agricultura e pecuária. O uso do solo rural tem de ser rural e os incentivos precisam atender a todos, não só aos grandes produtores. Criar meios para o reconhecimento da propriedade rural sem criar meios para a “vida rural” não resolverá. O homem do campo precisa mais do que um título de propriedade. ?
Como o Sr. avalia a edição recente do Provimento CGSP 51/2017, que alterou os Capítulos XIII e XX e acrescentou a Seção XIII às Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de SP??
O Estado de São Paulo é pioneiro na elaboração de normas sobre as atividades notariais e registrais e, no caso da regularização fundiária, não foi diferente. Desde 2012[2], a CGJSP vem regrando o tema REURB na seara registral, criando caminhos para que os RI´s possam viabilizá-las dentro de suas Serventias. Acho importante essa atuação efetiva da CGJSP, dentro do cenário atual vivido pelos cartórios, no sentido de regrar rapidamente as leis nacionais, gerando segurança para o delegatário da atividade extrajudicial, e de permitir que outros atores participem deste processo de regramento, como foi o nosso caso.
A usucapião coletiva teoricamente pode ser processada pela via extrajudicial. Como o Sr. a avalia? É um instrumento útil para as políticas habitacionais? ?
Em primeiro lugar, devo ressaltar que, na minha visão, a usucapião (qualquer que seja a espécie) não é instrumento de regularização fundiária, apesar de a Lei 13.465 trazê-la como tal. ?Usucapião é modo de reconhecimento de propriedade, é forma de regularização dominial. Regularização Fundiária é política pública de organização das cidades. Regularização Fundiária é o enfrentamento das mazelas geradas com o nascimento de cidades não ordenadas. O título de propriedade (derivado de usucapião), sem os estudos e planejamentos gerados na regularização, não surtirá o efeito esperado. Reconhecer propriedade, por si só, sem qualificar, adequar o imóvel, não agrega. Por sua vez, a usucapião coletiva resolve menos ainda, aliás, complica. Tornar comproprietários diversos cidadãos de uma área sem adequações urbanísticas, ambientais e sociais gerará a desarmonia. O condomínio, na acepção do direito, é figura jurídica de difícil aplicação até nos mais pomposos e luxuosos bairros dotados de toda infraestrutura. Também sugiro que façam uma pesquisa de quantas usucapiões coletivas foram realizadas no Brasil. Ouvi, em um debate na Faculdade de Direito da USP, cujo núcleo acadêmico foi responsável por uma das únicas usucapiões coletivas realizadas no Brasil (especificamente em parte da favela Paraisópolis), que foi um erro promover aquela ação. Reconhecer compropriedade que envolve situações de caos urbanístico não resolve, dificulta. Ressalte-se, ainda, que problemas sociais complexos, tais como a irregularidade fundiária de nossas cidades, não se resolvem em processos judiciais ou por meio de decisões judiciais. Problemas complexos se resolvem com políticas públicas de qualidade. Recorde-se a grande quantidade de ações de reintegração de posse que, apesar de decisões judiciais favoráveis à remoção, são inexequíveis, nada se resolve. Na minha visão, os processos judiciais deveriam estar focados em responsabilizar o gestor público que não administra a coisa pública, que não implanta a política pública de regularização fundiária e não em substituí-lo na gestão dos Municípios.
Referências:
[1] NE: São elas: ADI 5.883, ADI 5.771 e ADI 5.787.
[2] NE: V. Provimentos CG 18/2012, de 21/6/2012 (Dje 25/6/2012) e CG 25/2012, de 25/9/2012 (DJE de 15/10/2012), ambos baixados pelo des. José Renato Nalini, Corregedor-Geral de Justiça de SP.
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