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Filosofia do Direito
FILOSOFIA DO DIREITO
Direito à verdade: a questão jurídica – Carla Osmo
Seminário da Feiticeira
22/12/2014
- Introdução
O direito à verdade sobre graves violações de direitos humanos emergiu e se difundiu no direito internacional em meio a reflexões sobre como lidar com práticas levadas a efeito dentro de um período de violência política extraordinária, por agentes de Estado ou com sua aprovação ou cumplicidade. Nas últimas décadas, diferentes instrumentos da Organização das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos passaram a inclui-lo entre os direitos humanos reconhecidos internacionalmente.
O termo “direito à verdade”, porém, não possui ainda uma definição aceita. À pluralidade de foros onde se procura defini-lo se acrescenta uma multiplicidade de sentidos com divergências relevantes, o que resulta em dificuldades para quem queira fazê-lo valer e, no limite, suscita o ceticismo de alguns quanto à possibilidade de sua qualificação como um direito subjetivo juridicamente tutelável. Este estudo tem por objetivo apresentar um panorama preliminar do modo como está se estabelecendo o significado jurídico do direito à verdade, com atenção especial ao caso brasileiro. O seu pressuposto é a compreensão de que um primeiro passo, necessário para a sedimentação de um conceito para o direito à verdade e, consequentemente, para que se possam extrair consequências efetivas do reconhecimento desse direito, é a percepção de sua complexidade, em especial dos diferentes objetivos que com ele são perseguidos.
Principia-se com uma ilustração sobre os diferentes sentidos ou dimensões da verdade objeto do direito à verdade, feita com o recurso a estudos desenvolvidos nas temáticas dos direitos humanos e da justiça de transição (item 2). Em seguida, apresenta-se como, juridicamente, tem-se lidado com essa complexidade, em duas esferas: no direito internacional dos direitos humanos (item 3) e no âmbito do Judiciário brasileiro (item 4). Dessa forma, pretende-se oferecer um ponto de partida para debates e reflexões que contribuam para a formação e consolidação da conceituação jurídica desse direito.
- Os diferentes sentidos do direito à verdade
Quando se indaga sobre o conceito jurídico do direito à verdade, a questão central diz respeito à pergunta “direito a quê?” – trata-se de perquirir o significado que o termo verdade adquire quando se torna objeto desse direito. Independentemente da questão multissecular sobre o que seja a verdade, em termos de metafísica ocidental, ao se tornar o objeto de um direito, a verdade assume um sentido para o trato jurídico – aqui, ela é o que se busca com a reivindicação de que seja reconhecido e efetivado o direito. A questão que, então, se apresenta é: o que é que se almeja quando se reivindica o direito à verdade, quais demandas, quais necessidades se quer satisfazer?
É possível ilustrar os diferentes objetivos perseguidos quando se defende a legitimidade do reconhecimento desse direito a partir da bibliografia sobre direitos humanos e justiça de transição. Desta é possível extrair que o direito à verdade diz respeito, antes de tudo, à busca de informações desconhecidas sobre casos individuais de violações a direitos humanos, uma necessidade que se tornou fundamental frente à prática sistemática e massiva, na década de 1970, de desaparecimentos forçados pelas ditaduras da América Latina. A esse respeito, é instrutivo um texto de Nicole Questiaux, no qual se lê que a peculiaridade e a perversidade do desparecimento forçado
[…] consiste em impedir, desde o princípio, o acesso à verdade dos fatos.
[….] faz-se desaparecer os indivíduos precisamente para que não se saiba onde eles estão, o que elimina os meios de agir e de convencer. Em suma, buscar a verdade dos fatos é colocar em primeiro lugar em nossa ação e nessa matéria uma questão preliminar: onde eles estão?
Não se trata nesta fase de iniciar um processo, de condenar ou sancionar. Não, o que se quer primeiro é localizá-los (Questiaux, 1982, p. 64, t.n. [3][4]).
O desaparecimento forçado ofende uma pluralidade de direitos da vítima e, no que mais interessa a este estudo, produz um problema de verdade fatual, que o crime deliberadamente oculta e dissimula. Trata-se, com efeito, de violação que, além de tirar a vida de uma pessoa, organiza a ocultação dos próprios rastros – a destruição das provas da sua ocorrência – e, mais do que isso, procura eliminar as suas vítimas da história, extinguir a memória de suas vidas.
É por essa razão que diante dele garantir-se um direito à verdade aos familiares das vítimas é algo elementar. Essa é uma esfera na qual, no debate sobre as justificativas político-jurídicas do reconhecimento de um direito à verdade, nem mesmo parece haver lugar para a discussão filosófica sobre qual seja o significado da verdade. Como responder a uma família que busca desesperadamente informações sobre uma pessoa assassinada por agentes do Estado, com ocultação e dissimulação deliberada do crime, que é impossível estabelecer com certeza a verdade dos fatos, pois a verdade histórica é algo controverso, suscetível de muitas interpretações? A resposta de que “não existe verdade”, neste caso, mais parece um ato de violência, em continuação à violência do Estado que procurou negar não somente o crime, mas também a existência da vítima, afirmar que ela nunca existiu.
Mas, além de contemplar a busca da verdade dos fatos sobre casos individuais, a ideia de um direito à verdade aparece na bibliografia com outras acepções. Em análises sobre o papel das comissões da verdade, por exemplo, usualmente se observa que uma das principais medidas de reparação de graves violações de direitos humanos é o reconhecimento da ocorrência dessas violações pelo Estado. Nesse sentido, ao tratar dos fundamentos morais da Comissão de Verdade e Reconciliação sul-africana, André du Toit afirma:
Embora seja sempre importante indagar qual novo conhecimento, se algum, uma comissão da verdade acrescentou ao que já se conhecia sobre atrocidades políticas, ou até que ponto ela conseguiu resolver casos particulares controversos, essa pode não ser a sua mais importante contribuição para a verdade a respeito dessas atrocidades.
Mesmo sob o regime anterior, a verdade sobre as contínuas atrocidades políticas ou violações de direitos humanos, tais como a tortura, são em certo sentido já conhecidas […]. Oficialmente, entretanto, a ocorrência dessas violações é com frequência negada categoricamente. […] Nesses casos, a questão não é tanto a de uma falta de conhecimento, quanto a de uma recusa em reconhecer a existência dessas atrocidades políticas. […] Uma coisa é se as atrocidades políticas são obra de perpetradores desconhecidos, que dessa forma conseguem escapar à punição jurídica. Politicamente, ocorre uma situação diferente quando os perpetradores são conhecidos, mas estão em posição de negar a própria existência de suas vítimas ou atrocidades, dessa forma afirmando a sua própria impunidade (DU TOIT, 2000, p. 133, destaques no original, t.n.[5]).
Assim, na ideia de direito à verdade está envolvido o propósito de se obter um reconhecimento oficial para práticas previamente negadas. Mas, se esse reconhecimento é percebido como fundamental, ele é no entanto insuficiente, pois se considera igualmente importante que a ocorrência dos crimes seja conhecida pela sociedade como um todo. Portanto, uma terceira intenção perseguida com a afirmação do direito à verdade é encontrar-se uma forma acessível de se comunicar aquilo que aconteceu. Trata-se de construir publicamente uma memória sobre a catástrofe coletiva, com propósitos educativos, de uma maneira que seja capaz de alcançar e impactar a população em geral.[6]
Nesse sentido, segundo o relatório da Comissão de Verdade e Reconciliação Sul-Africana (1998), a oitiva dos testemunhos dos sobreviventes e familiares realizada por essa comissão “[…] serviu como um meio poderoso de educação para a sociedade como um todo” (ÁFRICA DO SUL, 1998, v. 1, p. 147, t.n.[7]). Essa foi a forma que então se encontrou para, por meio de um registro da memória das graves violações de direitos humanos praticadas naquele país, transmitir ensinamentos para o futuro:
As estórias contadas para a Comissão não eram apresentadas como argumentos ou reivindicações em um tribunal de direito. Antes, elas proporcionaram insights únicos sobre a dor do passado sul-africano, frequentemente tocando os corações de todos que as ouviam (ÁFRICA DO SUL, 1998, v. 1, p. 112, t.n.[8]).
A criação de um espaço público para testemunhos sobre a catástrofe coletiva, como forma de transmitir e transformar o conhecimento sobre esta, ocorreu pela primeira vez no julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém em 1961 (v. OSMO, 2014b).[9] Sobre ela, comentou o promotor do julgamento, Gideon Hausner:
[…] o único meio de fazer ver claramente a verdade era chamar os sobreviventes à barra, no maior número que a estrutura do processo pudesse admitir, e pedir a cada um deles um pequeno fragmento daquilo que ele havia vivido. O relato de certo encadeamento de circunstâncias feito por uma só testemunha é suficientemente tangível para ser visualizado. Reunidos, os depoimentos sucessivos de pessoas diferentes, que haviam vivido experiências diferentes, dariam uma imagem suficientemente eloquente para ser registrada. Assim, eu esperava dar ao fantasma do passado mais uma dimensão, aquela do real (HAUSNER apud WIEVIORKA, 2002, p. 96-97, t.n.[10]).
E a oitiva de testemunhos como meio de tornar efetivo o direito à verdade sobre graves violações de direitos humanos, além de seu propósito educativo e transformador da memória coletiva, tem ainda outro objetivo – o de fazer justiça às vítimas. A esse respeito, observou Antoine Garapon:
As vítimas, que foram ignoradas, humilhadas, expulsas do mundo, são de novo dignas de falar… e de ouvir. De seres sofridos, as vítimas passam também a sujeitos actuantes, deixando assim de serem apenas vítimas. A vida à qual a justiça pode restitui-las não é a vida biológica, mas a vida política, isto é, a que concede um peso legal às palavras de cada indivíduo e interroga todas as pessoas sobre as consequências das suas acções. Daí a importância do testemunho, não só para comprovar factos, mas também para fornecer a prova viva de que a palavra das vítimas voltou a ser produtiva e é tida em consideração (GARAPON, 2004, p. 139).
As passagens acima citadas ilustram como ideia de direito à verdade apresenta diferentes sentidos ou dimensões: 1) busca da verdade fatual sobre casos individuais, 2) reconhecimento pelo Estado dos crimes passados, 3) construção de uma memória coletiva com propósitos educativos, 4) oitiva pública dos testemunhos dos sobreviventes e familiares como forma de lhes fazer justiça. A polissemia da verdade objeto do direito em estudo foi inclusive tematizada no relatório da Comissão de Verdade e Reconciliação sul-africana, o qual afirmou, a respeito da base conceitual de sua atividade, ter trabalhado com diferentes noções de verdade: 1) verdade fatual ou forense, 2) verdade pessoal ou narrativa, 3) verdade social ou do diálogo e 4) verdade curativa (healing) e restaurativa (A?FRICA DO SUL, 1998, v. 1, p. 110). É, portanto, pertinente examinar como juridicamente tem-se lidado com essa complexidade.
- Algumas notas sobre o direito à verdade no direito internacional dos direitos humanos
O direito à verdade começou a ser invocado e reconhecido diante da prática massiva e sistemática de desaparecimento forçado, incialmente pelas ditaduras na América Latina. Nesse contexto, o direito à verdade incorporava reivindicações precisas dos familiares das vítimas – tratava-se, em essência, de um direito à verdade fatual sobre o acontecido com as pessoas desaparecidas, da qual não se tinha conhecimento. Foi com esse sentido que o direito à verdade encontrou a sua primeira previsão expressa em um instrumento internacional juridicamente vinculante, na Convenção Internacional para a Proteção de todas as Pessoas contra o Desaparecimento Forçado, de 2006. De acordo com essa Convenção, qualquer pessoa que sofra danos em virtude desse crime “[…] tem o direito de saber a verdade sobre as circunstâncias do desaparecimento forçado, o andamento e os resultados da investigação e o destino da pessoa desaparecida” (art. 24.2).
Porém, veio a ser atribuído ao direito à verdade um sentido bem mais amplo. Como se lê em um documento internacional que se tornou referência na temática da justiça de transição – o relatório sobre a questão da impunidade, elaborado pelo expert Louis Joinet e submetido em 1997 à Subcomissão Para a Prevenção da Discriminação e Proteção às Minorias da Nações Unidas (ONU, E/CN.4/Sub.2/1997/20/Rev.1, 1997) – sobre o que ele chama “direito de saber”:
Não se trata apenas do direito individual que possui cada vítima ou seus familiares de saber o que aconteceu, enquanto direito à verdade. O direito de saber é também um direito coletivo que encontra a sua origem na história para evitar que no futuro as violações se reproduzam. Ele tem por contrapartida, a cargo do Estado, o ‘dever de memória’, a fim de se precaver contra essas distorções da história que recebem o nome de revisionismo e negacionismo; com efeito, o conhecimento, por um povo, da história da sua opressão faz parte de seu patrimônio e, como tal, deve ser preservado. Essas são as principais finalidades do direito de saber enquanto direito coletivo (ONU, E/CN.4/Sub.2/1997/20/Rev.1, 1997, par. 17, t.n.[11]).
Nesse documento, portanto, o direito de saber corresponde à demanda por conhecimento sobre as violações de direitos humanos e à necessidade de preservação da memória dessas violações, em suas dimensões individual e coletiva. A possibilidade de acesso das vítimas ao Judiciário e o dever de processar, julgar e sancionar os autores das violações, dizem respeito, antes, ao direito à justiça.
Já na esfera interamericana de proteção dos direitos humanos, em especial na jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), o reconhecimento de um direito à verdade sempre esteve relacionado à afirmação da exigência de atuação do Judiciário no julgamento das violações. O fundamento jurídico do direito à verdade é identificado na conjugação dos artigos 1.1, 8 e 25 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH) – os mesmos dispositivos dos quais se infere o direito das vítimas e seus familiares de verem investigadas as práticas contra si perpetradas, e de verem os seus autores processados e punidos (CorteIDH, 2005, par. 96). Em outras palavras, a CorteIDH fundamenta o direito à verdade e o direito à justiça nos mesmos dispositivos da CADH.
Para a CorteIDH, não há direito à verdade efetivo sem a participação do Judiciário. A CorteIDH não admite que mecanismos como comissões da verdade sejam percebidos como suficientes para fazer valer o direito à verdade. Ao contrário, sublinha repetidamente que a “verdade histórica” apresentada nos relatórios das comissões da verdade não substitui a “verdade judicial” alcançada nos processos voltados a estabelecer responsabilidades individuais (CorteIDH, 2006a, par. 150, 2006b, par. 224, 2007b, par. 128, 2010a, par. 158, 2010b, par. 297, 2012a, par. 298, 2012b, par. 298). Afirma tratar-se de determinações complementares da verdade, cada qual com seu sentido e alcance, potencialidades e limites (CorteIDH, 2007b, par. 128, 2012b, par. 298), e já decidiu que a instauração de processos penais não poderia esperar o fim do trabalho da comissão da verdade (CorteIDH, 2007b, par. 129). A conclusão da CorteIDH é a de que não basta a investigação e divulgação das circunstâncias que envolveram as práticas para que seja atendido o direito à verdade, em qualquer de suas dimensões; este será apenas observado quando tiverem sido identificadas, processadas e sancionadas as pessoas responsáveis por elas (CorteIDH, 2007a, par. 146, 2006b, par. 222).
É por isso que as anistias são incompatíveis não apenas com o direito à justiça, mas também com o direito à verdade. Conforme relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos sobre o direito à verdade, a garantia deste direito “[…] requiere la investigación y esclarecimiento judicial de las violaciones de derechos humanos y la superación de los obstáculos legales o de facto que impiden la judicialización de los responsables” (OEA, OEA/Ser.L/V/II.152, par. 33). A atividade das comissões da verdade, segundo esse mesmo relatório, é complementar aos processos judiciais.
Posteriormente, essa sobreposição entre o direito à verdade e o direito à justiça também pôde ser observada na esfera universal de proteção dos direitos humanos, inclusive na própria atualização do relatório de Louis Joinet sobre os princípios para o combate à impunidade, feita em 2005 pela especialista Diane Orentlicher (ONU, E/CN.4/2005/102/Add.1, 2005a). Este documento deu maior ênfase do que o precedente, elaborado por Louis Joinet, à atividade do Judiciário entre as medidas aptas a concretizar o direito à verdade. Conforme o relatório que explica a revisão, “[…] a experiência recente colocou em relevo as contribuições independentes do judiciário para o esclarecimento das circunstâncias relativas a violações de direitos humanos” (ONU, E/CN.4/2005/102, 2005b, par. 22, t.n.[12]).
Vê-se, portanto, que, o direito à verdade adquiriu um sentido lato, de dimensões individual e coletiva, o qual incorpora demandas que vão além do conhecimento de fatos sobre casos individuais não solucionados. Ele passou a comportar uma dimensão de titularidade coletiva e a dizer respeito à política de violência em seu conjunto, a qual deveria ser esclarecida para dar à sociedade condições de evitar uma recidiva. Passou, também, a incluir demandas que – insistindo na importância de um reconhecimento oficial, mesmo de práticas cuja ocorrência já seja de conhecimento público – parecem se preocupar mais com a questão da veracidade do que com fatos obscuros. E veio ainda a se confundir parcialmente com o direito à justiça, ou ser ele próprio considerado uma forma de se fazer justiça e oferecer reparação às vítimas.
- O direito à verdade no Judiciário brasileiro
Nas esferas nacionais, o direito à verdade normalmente não está previsto nas constituições. Em alguns países ele foi incorporado à legislação infraconstitucional, sendo em outros concebido como uma decorrência de direitos e princípios constitucionais, a exemplo da liberdade de informação, da forma republicana de governo, do princípio democrático e do direito de acesso à justiça (Abregu, 1996, p. 19; ONU, E/CN.4/2006/91, 2006, par. 31; Weichert, 2009, p. 406). No Brasil, o direito à verdade foi mencionado expressamente na lei que criou a Comissão Nacional da Verdade (Lei n. 12.528/2011[13]) e em normas que criam comissões da verdade estaduais,[14] de acordo com as quais as comissões da verdade têm entre as suas finalidades tornar efetivo o “direito à memória e à verdade histórica”. Essas normas, no entanto, não explicitam o significado jurídico desse direito.
O Judiciário brasileiro, como ocorreu em diferentes países, foi chamado a se pronunciar em demandas fundadas no direito à verdade ou relacionadas ao objeto que lhe é atribuído, e passou a se posicionar de forma casuística sobre aquilo que pode ser concretamente exigido com base nesse direito e sobre quem são os seus titulares. Podemos citar alguns exemplos, os quais mostram que, no Brasil, uma jurisprudência ainda incipiente tende a admitir somente alguns dos sentidos atribuídos ao direito à verdade e, em relação a estes, por vezes não foi capaz, até o momento, de torna-los efetivos.
Serão apenas comentados brevemente alguns processos paradigmáticos voltados a cada um dos seguintes objetos, relacionados ao exercício desse direito: (A) reconhecimento da responsabilidade institucional do Estado; (B) obtenção de informações sobre desaparecimentos forçados; (C) reconhecimento da responsabilidade pessoal de agentes da repressão; (D) exercício da dimensão coletiva do direito à verdade; e (E) (in)compatibilidade entre o exercício do direito à verdade e a anistia penal dos mesmos crimes.
(A) A primeira ação a ser comentada, voltada ao reconhecimento da responsabilidade institucional do Estado, foi ajuizada pela família do jornalista Vladimir Herzog, após um inquérito policial militar ter afirmado que a sua morte, em 1975, nas dependências do DOI-CODI do II Exército, teria se dado por suicídio. Foi postulada a declaração da responsabilidade da União Federal pela prisão arbitrária, tortura e morte de Herzog, bem como de sua obrigação de indenizar os autores da ação. Não se pedia a efetiva condenação da ré ao pagamento de indenização, mas tão-somente que fosse declarada a existência de uma obrigação de indenizar. A pretensão real dos autores, segundo Faoro, era obter um reconhecimento judicial de que Herzog foi preso ilegalmente, sofreu torturas e morreu por culpa da União (FAORO, 1978, p. 14).
A sentença, proferida ainda durante a ditadura, em 1978, tornou-se conhecida por divergir da atuação judicial mais comum e corajosamente julgar procedente a pretensão dos autores. Decidiu que (i) a prisão de Herzog foi ilegal; (ii) tal como outros presos políticos, ele foi submetido à tortura; (iii) o suicídio não tinha ficado demonstrado, sendo sem valor o laudo que concluiu pela sua ocorrência, posto que um dos peritos médicos que o assinaram não havia visto o corpo; e (iv) a União Federal era civilmente responsável pela morte, inclusive pelos danos morais sofridos pelos autores (BRASIL, Herzog e outros vs. União Federal, 27 out. 1978). Janaína Teles cita a forma como a autora da ação, Clarice Herzog, recebeu a sentença, sublinhando que “[…] embora a verdade ‘fosse tão clara, era preciso a palavra da Justiça’” (TELES, 2005, p. 220-221).
A responsabilidade do Estado foi igualmente reconhecida em ação de 1999 promovida por Inês Etienne Romeu contra a União Federal. Inês Etienne – a única sobrevivente do centro clandestino da repressão em Petrópolis conhecido como “Casa da Morte” – pretendia obter sentença que declarasse a responsabilidade dos agentes da ré pelo cárcere privado e tortura sofridos por ela entre 5 de maio e 11 de agosto de 1971. A sentença de procedência, de 6 de dezembro de 2002, constatou tratar-se de “ação cujo provimento é meramente declaratório cujo único escopo é simplesmente produzir certeza jurídica”. Segundo a sentença, o objetivo da ação era “[…] afastar qualquer dúvida existente sobre tal relação jurídica, restaurando, assim, a verdade”. De acordo com ela, a pretensão da autora estava amparada por numerosos direitos e princípios, bastando para a sua acolhida a referência ao princípio da dignidade da pessoa humana, ao qual está integrado o direito à verdade.[15] A União recorreu, mas depois desistiu do recurso, sendo esse pedido de desistência homologado pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região (BRASIL, Romeu vs União Federal, 8 ago. 2007).
(B) O processo mais relevante até hoje promovido para a obtenção de informações sobre desaparecimentos forçados durante a ditadura no Brasil foi ajuizado em 1982 por familiares de desaparecidos da Guerrilha do Araguaia contra a União. Apenas em 2003, depois de uma extinção da ação, revertida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª. Região, e de diferentes recursos da União – muitos alegando questões processuais formais –, foi proferida sentença de procedência. A sentença determinou, além de outras providências, o fornecimento de informações sobre a localização dos restos mortais das pessoas desaparecidas e a apresentação àquele Juízo de “[…] todas as informações relativas à totalidade das operações militares relacionadas à Guerrilha”. Nela se lê que, embora seja impossível restituir às vítimas o seu direito à vida e à integridade física, os seus familiares “[…] podem ser contemplados com o direito à verdade dos fatos” sobre o que se passou com os seus próximos.
A execução dessa sentença, após novos recursos da União, somente teve início em 2009. Nesse ano, a Advocacia Geral da União, ainda que antes tivesse alegado a falta de provas de que existissem informações a respeito dos fatos em questão, apresentou “[…] cerca de 21.000 páginas de documentos dos arquivos do antigo Serviço Nacional de Informações que estavam sob a custódia do Arquivo Nacional e que compreendem documentos dos três serviços secretos das Forças Armadas” (CorteIDH, 2010b, par. 192). Pela demora na entrega dessa documentação, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) concluiu ter o Estado brasileiro violado o direito a buscar e a receber informação, consagrado no artigo 13, combinado com os artigos 1.1, 8.1 e 25, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CorteIDH, 2010b, pars. 210-112). Em artigo publicado em 2011, membros do Centro Pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) que participaram da representação perante a Corte Interamericana escreveram que os familiares
[…] até o presente momento, mesmo tendo a ação judicial (de 1982) recebido uma sentença favorável, não tiveram acesso às informações que solicitaram a respeito de seus questionamentos: ‘onde estão? Como e quando (desapareceram ou foram mortos)? E quem (são os responsáveis)?’ (KRSTICEVIC; AFFONSO, 2011, p. 371).
(C) Uma ação declaratória ajuizada em face do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra levou de forma inovadora ao reconhecimento judicial, para além da responsabilidade institucional do Estado pelos crimes cometidos durante a ditadura, da responsabilidade pessoal de um agente da repressão. Essa ação visava tão somente à declaração judicial de que o réu, ao agir com dolo e cometer ato ilícito (prática de tortura), causou danos aos autores, sem pleitear indenização alguma. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP), por maioria, negou provimento à apelação de Ustra contra a sentença de procedência.
Anteriormente, em outra ação – ajuizada pela companheira e pela irmã de Luiz Eduardo da Rocha Merlino, morto em 1971 em decorrência de tortura perpetrada por agentes do Estado –, esse mesmo tribunal havia assentado ser descabida, no caso, ação declaratória (SÃO PAULO, Almeida e outra vs. Ustra, 23 set. 2008). Já no caso ora comentado, prevaleceu o entendimento do desembargador relator, Rui Cascaldi, conforme o qual a ação buscaria a declaração de uma relação jurídica e não de mero fato. A consequência jurídica pretendida seria uma reparação do dano “[…] meramente moral que traz conforto ao espírito e dignidade à família, independentemente de reparação pecuniária” (SÃO PAULO, Teles e outros vs. Ustra, 14 ago. 2012). O Superior Tribunal de Justiça, em decisão de dezembro de 2014, negou provimento ao recurso especial de Ustra, ficando vencidos a Ministra Nancy Andrighi e o Ministro João Otávio de Noronha (BRASIL, Ustra vs. Teles e outros, 9 dez. 2014).[16]
As autoras da primeira ação declaratória, sobre o caso de Luiz Eduardo Merlino, ingressaram posteriormente com ação condenatória contra o mesmo réu, julgada procedente em 25 de junho de 2012 (SÃO PAULO, Almeida e outra vs. Ustra, 25 jun. 2012). A juíza Cláudia de Lima Menge, da 20ª. Vara Cível do Foro Central de São Paulo, baseando-se na jurisprudência do STJ para reconhecer a imprescritibilidade da ação de reparação de danos morais decorrentes de ofensas a direitos humanos, apresentou o direito à verdade entre os fundamentos de sua decisão.[17]
(D) Sobre a judicialização do exercício da dimensão coletiva do direito à verdade, é interessante mencionar o posicionamento refratário do Judiciário, até o momento, em uma ação civil pública proposta contra a União e agentes de Estado durante a ditadura, relativa ao funcionamento do DOI/CODI do II Exército (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 2008). Essa ação, fundada, inclusive, no “direito de conhecer a verdade e de construir a memória” das vítimas e de toda a coletividade, requer, entre outros pedidos: a declaração do dever da União e do Estado de São Paulo de fornecer informações sobre o aparelho repressivo e sobre atos de violências praticados; a declaração da responsabilidade dos agentes de Estado incluídos no polo passivo pelo funcionamento desse aparelho repressivo; e a declaração da existência de relação jurídica entre esses últimos, a sociedade brasileira e as vítimas das violações de direitos humanos perpetradas.
Essa ação foi extinta sem julgamento de mérito em relação aos pedidos mencionados. Para motivá-lo, a sentença apresenta, entre outros, os argumentos de que: medidas já adotadas pela União acarretam a perda superveniente de interesse processual em relação ao pedido de tornar públicas as informações sobre as atividades do DOI/CODI; de qualquer forma, seria inadequada a ação declaratória relativa a esse pleito, quando na realidade se busca impor à União obrigações de fazer, ou ainda substituir-se ao habeas data; e o Ministério Público não teria legitimidade ativa para atuar em favor de interesses individuais privados dos presos políticos e seus familiares. A sentença se posiciona, ainda, pela “[…] absoluta inadequação da ação civil pública para ser utilizada como instrumento do chamado ‘direito à verdade histórica’ e da promoção da ‘reconciliação nacional’”. O processo judicial não se prestaria à “[…] apuração de fatos políticos e de responsabilidades histórica e social de agentes do Estado”, o que “[…] cabe aos órgãos de imprensa, ao Poder Legislativo, aos historiadores, às vítimas da ditadura e aos seus familiares etc.” (BRASIL, MPF vs. União Federal e outros, 5 mai. 2010, p. 12). Em relação aos demais pedidos, a ação foi julgada improcedente.
O Judiciário teve também que se pronunciar sobre a dimensão coletiva do direito à verdade em uma ação ordinária conjuntamente promovida pelo Clube Naval, pelo Cube Militar e pelo Clube da Aeronáutica em face da União Federal, dias antes da entrega do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) à Presidente da República, para questionar a legitimidade dos membros e os trabalhos desenvolvidos pela CNV. Em sede de antecipação de tutela, pedia-se que fosse suspensa a entrega e a divulgação do referido relatório, o que foi rejeitado, em primeira e segunda instância. Desta vez, reconheceu-se a existência de um direito à verdade de dimensão coletiva, cuja efetivação faria parte do mandato da CNV (BRASIL, Clube Naval e outros vs. União Federal, 9 dez. 2014).[18]
(E) Por fim, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153, o Supremo Tribunal Federal (STF) foi chamado a se pronunciar sobre a (in)compatibilidade entre o exercício do direito à verdade e a anistia penal dos mesmos crimes. Embora os Ministros que enfrentaram expressamente a questão tenham reconhecido expressamente a existência desse direito, eles concluíram que o objetivo de torna-lo efetivo não seria prejudicado pelo reconhecimento da constitucionalidade da interpretação da Lei de Anistia impugnada na ação, conforme a qual estariam anistiados os crimes dos agentes da repressão. Aparentemente, no entendimento do STF – contrário à jurisprudência da CorteIDH –, o direito à verdade não abrangeria a “verdade judicial” produzida em processos criminais; seria possível tornar efetivo o direito à verdade, mesmo no caso de se ter como inviabilizada, pela Lei de Anistia, a persecução penal dos autores desses crimes. Foram opostos embargos de declaração em face dessa decisão, pendentes de apreciação até a conclusão deste trabalho.
Assim, o Judiciário brasileiro acolheu pedidos de reconhecimento de responsabilidade institucional e, apenas recentemente, veio a admitir ação judicial voltada especificamente ao reconhecimento de responsabilidade pessoal na esfera civil. Além disso, em uma ação extremamente morosa contra um Estado resistente, acabou se mostrando favorável ao direito dos familiares dos desaparecidos da Guerrilha do Araguaia de conhecer o destino desses, sem resultados efetivos. Por outro lado, ele foi até o momento refratário a outros pedidos fundados no direito à verdade: determinação da observância da dimensão coletiva do direito à verdade por meio de ação civil pública e reconhecimento da invalidade da extensão dos efeitos da Lei da Anistia aos agentes da repressão. A dimensão coletiva do direito à verdade, entretanto, serviu como embasamento de decisão que reconheceu a legitimidade do mandato da CNV.
- Conclusão
Neste trabalho, procurou-se apresentar um panorama preliminar sobre a forma como está se sedimentando um conceito jurídico de direito à verdade sobre graves violações de direitos humanos.
O direito individual à verdade de titularidade de familiares de desaparecidos políticos é reconhecido e delimitado na convenção internacional de 2006 contra o desaparecimento forçado, embora muitas vezes subsistam obstáculos à sua efetivação. Já outros sentidos atribuídos à dimensão individual do direito à verdade, bem como a sua dimensão social ou coletiva, ainda geram dúvidas importantes quanto às formas e circunstâncias de seu exercício, a legitimidade para pleitear a sua tutela e as obrigações estatais que lhe são correspondentes. Por exemplo, no Brasil, o Judiciário reconheceu a existência de um direito à verdade de dimensão coletiva a embasar o mandato legal da CNV, mas permanece refratário à ideia de que ele próprio teria um papel na efetivação desse direito. Ademais, decidiu que o direito à verdade não acarreta a obrigação dos Estados de investigar, julgar e sancionar os responsáveis por graves violações de direitos humanos, contrariando, neste ponto, a jurisprudência da CorteIDH.
Se apontamos as dificuldades existentes em torno da formação de um conceito que se almeja tornar operatório e ver estabilizado como um topos – um lugar-comum da argumentação jurídica –, é porque reconhecemos essas dificuldades como desafios a serem enfrentados, até para que se alcance uma maior clareza quanto ao papel que deve ser cumprido pelos órgãos do Estado, como as comissões da verdade e o Judiciário. Esperamos que esta análise possa fornecer subsídios para reflexões e debates sobre o tema do direito à verdade, contribuindo para a formação e consolidação da sua conceituação jurídica.
REFERÊNCIAS
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[1] Doutora em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Universidade de São Paulo e mestre em Direito do Estado pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo. E-mail: carlaosmo@yahoo.com.br.
[2] O presente estudo condensa alguns dos resultados obtidos em investigação levada a efeito na tese de doutorado da autora, intitulada Direito à verdade: Origens da conceituação e suas condições teóricas de possibilidade com base em reflexões de Hannah Arendt (2014), com reflexões desenvolvidas a partir dos debates ocorridos no Seminário da Feiticeira, em novembro de 2014, em Ilhabela.
[3] Neste trabalho, foi feita uma tradução livre para o português das citações em inglês e francês, indicada com a abreviação “t.n.” (tradução nossa). A versão original é sempre transcrita em nota de rodapé, em itálico, para facilitar a identificação e permitir a verificação pelo leitor.
[4] “[…] consiste à interdire, dès le départ, l’accès à la vérité des faits.
[…] on fait disparaître les individus précisément pour qu’on ne sache pas où ils sont, ce qui retire les moyens d’agir e de convaincre. En somme, rechercher la vérité des faits, c’est de poser en premier lieu dans notre action en cette matière une question préalable : où sont-ils ?
Il ne s’agit pas dans cette phase d’entamer une procédure, de prononcer des condamnations ou des sanctions. Non, ce que l’on veut d’abord, c’est les localiser”.
[5] “Though it will always be relevant to inquire what, if any, new knowledge a truth commission has added to what had previously been known about political atrocities, or to what extent it suceeded in resolving particular contested cases, this may not be its most important contribution to the truth concerning such atrocities.
Even under the prior regime the truth of ongoing political atrocities or human rights violations such as torture are in a sense already known (certainly to the perpetrators and victims themselves; to certain degrees to their immediate relations, colleagues, and friends; and to a lesser extent in the wider community). […] In such cases the issue is not so much that of a lack of knowledge as of the refusal to acknowledge the existence of these political atrocities
[….] It is one thing if political atrocities are the work of unkown perpetrators, who thereby manage to escape punishment under the law. Politically, it is a different situation if the perpetrators are known as such, but are in a position to deny the very existence of their victims or atrocities, thereby asserting their own impunity”.
[6] Os estudos que tratam do direito à verdade, tanto quanto documentos e normas que mencionam esse direito, muitas vezes colocam o termo “verdade” de par com o termo “memória”. Frequentemente não fica claro se se entende tratar-se de um mesmo direito a proteger simultaneamente a verdade e a memória, de um direito à verdade que inclui a ideia de memória, ou de dois direitos de objetos distintos (v. OSMO, 2014a).
[7] “[…] served as a powerful medium of education for society at large”.
[8] “The stories told to the Commission were not presented as arguments or claims in a court of law. Rather, they provided unique insights into the pain of South Africa’s past, often touching the hearts of all that heard them”.
[9] Adolf Eichmann, funcionário da Alemanha nazista com papel importante no projeto de extermínio dos judeus da Europa – o responsável pela organização da identificação, reunião e deportação dos judeus para os campos de concentração e extermínio (DOUGLAS, 2001, p. 133) –, foi capturado na Argentina pelo serviço secreto israelense e levado a julgamento em Jerusalém em 1961.
[10] “[…] le seul moyen de faire toucher du doigt la vérité était d’appeler les survivants à la barre en aussi grand nombre que le cadre du procès pouvait l’admettre et de demander à chacun un menu fragment de ce qu’il avait vécu. Le récit d’un certain enchaînement de circonstances fait par un seul témoin est suffisamment tangible pour être visualisé. Mises bout à bout, les dépositions successives de gens dissemblables, ayant vécu des expériences différentes, donneraient une image suffisamment éloquente pour être enregistrée. Ainsi espérais-je donner au fantôme du passé une dimension de plus, celle du réel”.
[11] “Il ne s’agit pas seulement du droit individuel qu’a toute victime, ou ses proches, de savoir ce qui s’est passé en tant que droit à la vérité. Le droit de savoir est aussi un droit collectif qui trouve son origine dans l’histoire pour éviter qu’à l’avenir les violations ne se reproduisent. Il a pour contrepartie, à la charge de l’Etat, le ‘devoir de mémoire’ afin de se prémunir contre ces détournements de l’histoire qui ont pour nom révisionnisme et négationnisme; en effet, la connaissance, par un peuple, de l’histoire de son oppression appartient à son patrimoine et comme telle doit être préservée. Telles sont les finalités principales du droit de savoir en tant que droit collectif”.
[12] “[…] recent experience has highlighted the independent contributions of the judiciary in clarifying circumstances surrounding human rights violations”.
[13] “Art. 1º É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (destaque inserido).
[14] V., por exemplo, a Lei do Estado de Pernambuco n. 14688/2012, a Resolução da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo n. 879/2012 e o Decreto do Estado do Rio Grande do Sul n. 49380/2012.
[15] “Negar ao ser humano a declaração que restaure a verdade, perpetuando o estado de incerteza acerca da participação de agentes do Estado, reproduz novamente uma ação de desrespeito às vítimas, tal qual os atos de tortura praticados no regime autoritário, ao privá-las de informações verídicas, eternizando a dúvida e a mentira.
Em suma: o direito à verdade integra o princípio da dignidade humana, devendo, desta forma, ser garantido a qualquer pessoa; aliás, há norma específica no texto constitucional que assegura a todos o acesso à informação (art. 5°- XIV). Como bem lembrou o i. Procurador da República que oficiou no processo, Dr. André de Carvalho Ramos, também a Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso Bámaca Velásquez, já decidiu que ‘el derecho a la verdad, em última instancia, se impone también em señal de respecto a los muertos y a los vivos’.
Considerando que os fatos narrados na petição inicial foram devidamente comprovados, cabe agora ao Estado, por meio do Poder Judiciário, dar a certeza, jurídica a respeita da relação jurídica existente entre autora e a União Federal pelos atos ilícitos que sofreu durante o regime autoritário” (BRASIL, Romeu vs. União Federal, 14 nov. 2002).
[16] De acordo com o voto-vista do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino:
A pretensão formulada pelos demandantes encontra-se em plena consonância com um Estado Democrático de Direito, que busca resgatar a sua memória acerca de gravíssimos fatos ocorridos no período militar iniciado em 1964.
A recuperação da memória histórica é fundamental para uma nação para evitar que essas graves violações aos direitos humanos voltem a ocorrer.
[…]
A par dessa missão institucional a que bem se arrogou o Estado brasileiro, após a redemocratização do país, fruto inclusive de um movimento internacional no sentido da apuração e punição de violações a direitos humanos, deve ser reconhecido também o direito daqueles que experimentaram o que de mais triste houve no período do regime militar, mediante demandas declaratórias individuais, que é o reconhecimento formal da existência da tortura por eles experimentados em face de quem direta ou indiretamente a perpetrou” (BRASIL, Ustra vs. Teles e outros, 9 dez. 2014).
[17] “A ilicitude no comportamento do réu teve o condão de causar ofensa a bem juridicamente tutelado das autoras, de caráter extrapatrimonial. Trata-se de dano reflexo, vez que a conduta ilícita se dirigiu a ente próximo e muito querido delas, integrante do círculo familiar de relacionamento mais relevante. […] A morte prematura por motivo político e com requintes de crueldade privou as autoras do convívio com seu companheiro e irmão, respectivamente. Por certo, a indenização almejada não será capaz de sanar a dor suportada pelas autoras, nem suprir-lhes a ausência do ente querido. Destina-se a minorar o intenso sofrimento. Muito se assemelham em seus objetivos a indenização aqui almejada e o trabalho da Comissão da Verdade, cujos integrantes foram recentemente empossados pela União. Como escreveu Flávia Piovesan em recente artigo publicado no jornal ‘O Estado de São Paulo’, edição de 6/5/2012: ‘Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ‘toda sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do ocorrido, assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes delitos foram cometidos, a fim de evitar que esses atos voltem a ocorrer no futuro’’” (SÃO PAULO, Almeida e outra vs. Ustra, 25 jun. 2012).
[18] “De ver-se, ainda, que, no Estado Democrático de Direito, prevalecem, dentre outros, os princípios da transparência e da publicidade, que iluminam o direito fundamental de todos ao resgate da verdade histórica, em qualquer dimensão” (BRASIL, Clube Naval e outros vs. União Federal, 9 dez. 2014).
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