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Caio Mário da Silva Pereira e as fontes do Direito
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
18/02/2022
Caio Mário da Silva Pereira (1913-2004) deixou-nos extensa obra de direito privado. Atuou também em temas que revelavam profundo conhecimento de direito público. Foi Consultor-Geral da República, de 1961 a 1965. Seu Curso de Direito Civil (Instituições), recorrentemente reeditado, é livro fundamental para quem pretenda uma formação jurídica que transcenda às facilitações que há no mercado. Tenho na minha mesa a 29ª edição, revista e atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes, editada pela Gen Forense.
Caio Mário da Silva Pereira e as fontes do Direito
Chama-me a atenção a lição sobre as fontes do direito, inseridas em capítulo que trata do direito objetivo. Uma recolha bibliográfica abre a seção. O leitor toma conhecimento das fontes da pesquisa. Caio Mário baseou-se em Clovis Bevilaqua, Henri Capitant, Paul Roubier, Bernhardt Windscheid, Léon Duguit, François Geny, Pontes de Miranda, San Tiago Dantas, Orlando Gomes, entre outros.
Para esse importante autor mineiro as fontes do direito qualificam meios técnicos de realização do direito objetivo. São categorias operacionais. As fontes históricas descortinam as origens dos vários institutos jurídicos. É o que colhemos ao estudarmos o Digesto, as Ordenações e demais textos normativos não mais dotados de eficácia. As fontes autuais são instâncias criadoras do direito, em sua expressão formal.
Caio Mário refere-se ao artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, que define como fontes do direito a lei, a analogia, os costumes e os princípios gerais. Esse texto normativo tem pouquíssima aplicabilidade no contexto dos problemas contemporâneos. Não se refere, por exemplo, à jurisprudência, que presentemente pontifica, dada a dogmática da força do precedente. Jurisprudência, no ambiente original do livro, seria dotada de menor eficácia vinculante, ainda que considerada uma “força científica”, inclusive influenciando o legislador. Exemplifico essa ideia com a nova lei do mandado de segurança, que é de 2006, e que positivou a construção jurisprudencial que se fixava em torno do assunto.
A lei se revelaria como uma fonte principal, e as demais, elencadas na Lei de Introdução, substancializariam fontes acessórias ou secundárias. A fonte do direito identifica-se com um ato jurídico, um ato-regra, que descortina uma aptidão deliberativa. Para Caio Mário essa aptidão ocorre no direito público em forma de competência, e no direito privado em forma de capacidade.
A lei, principal fonte formal do direito, em nosso modelo de ancestralidade continental europeia, é caracterizada por sinalizar uma ordem (um comando do Estado ao indivíduo, sujeitando-o à regra), dotada de generalidade (é um comando abstrato), com intenções permanentes, proveniente de autoridade competente, e marcada por coercibilidade que se manifesta em forma de sanção. Para Caio Mário há também uma sanção extrema, que se constitui em ameaça física contra o transgressor. É o caso das leis penais.
Caio Mário também se refere ao costume, que historicamente seria a forma primeira de elaboração da norma jurídica. É uma fonte subsidiária. O costume conta com elementos externos e internos. Do ponto de vista externo, segue Caio Mário, o costume se afirma pela repetição. Não vigora mais a Lei da Boa Razão (1769), que exigia dez anos de existência para que um costume fosse considerado uma fonte do direito. Trata-se da “inveterata consuetudo”, força que decorre da antiguidade do costume invocado.
Do ponto de vista interno, explica Caio Mário, o costume radica em uma convicção (opinio necessitatis). É o tema da teoria da convicção. O uso somente se torna direito em virtude do convencimento geral de sua legitimidade. Os costumes não podem ser opostos à lei, não há o “consuetudo contra legem”. O costume pode suprir uma omissão da lei (consuetudo praeter legem), ou ainda propiciar uma interpretação razoável (consuetudo secundum legem). Entre nós, há uma excelente obra sobre os costumes, de autoria de Jônatas Luiz Moreira de Paula, que resenharei brevemente.
Ainda deve-se levar em conta a analogia, que Caio Mário divide em analogia legal (analogia legis) e analogia jurídica (analogia iuris). Aquela primeira consiste na aplicação da lei a caso não previsto, mas marcado pelos mesmos contornos: “ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio“. Esta última corresponde à transposição da norma para um caso controvertido, em decorrência da inspiração de um pressuposto.
À época das primeiras edições do livro os princípios gerais eram estudados e aplicados de um modo muito diferente de sua capacidade operacional contemporânea. Caio Mário os considerava expressão do pensamento mais alto da cultura jurídica, uma espécie de abstração lógica que marcaria o substrato comum das diversas normas positivadas. Nem de longe previa a força avassaladora que os princípios exerceriam no direito superveniente.
Caio Mário ainda considerou a importância da doutrina, que comparou à “reponsa prudentium” dos romanos. Abonou o direito comparado, que identificou como uma “fonte segura de informações preciosas, que arejam e esclarecem o espírito do jurista”. Ao fim do capítulo, Caio Mário tratou do tema da codificação, que qualificou como uma pressuposição de dedução sistemática de um determinado assunto.
Caio Mário traduziu uma geometria oculta que sustenta os institutos de direito privado. É autor de um tempo no qual o direito era estudado de forma sistemática, ainda infenso às simplificações que posteriormente foram aviadas, e que tornaram a ciência jurídica uma colcha de retalhos de opiniões não confiáveis, o que pode ser uma das causas da falta de credibilidade do direito contemporâneo.
Conheça as obras de Caio Mário da Silva Pereira
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