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O Estado e a crise ecológica
06/12/2019
O livro Dano Ambiental, de José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala, analisa juridicamente os diversos matizes do dano ambiental, do individual ao coletivo. Confira um trecho da obra e veja mais sobre o Estado e a crise ecológica:
O Estado e a crise ecológica
Busca-se, de início, fazer uma breve descrição de caráter retrospectivo com uma inserção prospectiva sobre a atuação do Estado e de suas diferentes ideologias, verificando seu modo de agir para enfrentar a crise ecológica e da mudança climática [2-3] que vive a sociedade. Procurar-se-á, ainda, fazer uma abstração sobre a necessidade de construir um Estado mais voltado para as questões ambientais, partindo das diversas formas de sua concepção historicamente configuradas.
A tomada de consciência da crise ecológica é deflagrada, principalmente, a partir da constatação de que as condições tecnológicas, industriais e formas de organização e gestões econômicas da sociedade estão em conflito com a qualidade de vida. Em adição, Hardin[4] destaca a coligação entre a crise ambiental e o crescimento demográfico, incluindo este último fator como elemento incompatível com a preservação da natureza.
Um posicionamento diante desse conflito tende a remodelar a forma de desenvolvimento econômico, com vistas a integrar o bem ambiental como elemento de um novo modelo.
Essa posição é ressaltada por Franco,[5] quando trata do desenvolvimento econômico e de crise ambiental: “E é essa verificação de pontos negros, digamos assim, de equilíbrio entre a atividade econômica e a qualidade de vida e a ordenação natural, que vem colocar em causa o conceito tradicional de crescimento que a Revolução Industrial implantou e que, de algum modo, inspirou a lógica dos sistemas capitalistas até o nosso século”.
Verifica-se que tanto as ideologias liberais como as socialistas não souberam lidar com a crise ambiental, considerando que o capitalismo industrialista, no primeiro caso, e o coletivismo industrialista, no segundo, puseram em prática um modelo industrial agressivo aos valores ambientais da comunidade.
Essencialmente, a crise ambiental configura-se num esgotamento dos modelos de desenvolvimento econômico e industrial experimentados. De fato, o modelo proveniente da Revolução Industrial, que prometia o bem-estar para todos, não cumpriu aquilo que prometeu, pois apesar dos benefícios tecnológicos, trouxe, principalmente, em seu bojo, a devastação ambiental planetária indiscriminada.[6]
Por um lado, o modelo capitalista, em considerações puramente econômicas, fincado no individualismo e no mercantilismo, é agressivo ao meio ambiente.
De outro, o coletivismo é igualmente ou até mais agressivo, pois se baseou em uma economia de escala, acreditando em uma unidade de grande escala, porque apostou mais na economia suja e não sofreu as respostas diretas dos interessados, pela falta de um contexto de liberdade.[7]
Nesse sentido, Condesso[8] ressalta que
(…) o ambiente e a economia têm vivido em tensão e até mesmo em antagonismo. Com efeito, com o apoio dos poderes políticos, o mundo, confundindo a qualidade de vida, o bem-estar, com o consumismo, com a abundância de bens industriais e o desperdício, desde há mais de um século, que tem vivido uma civilização industrial, geradora de efeitos ecologicamente depredadores, socialmente injustos e economicamente inviáveis e insustentáveis.
O Estado de bem-estar marginalizou a questão social ambiental, pois, dirigido por políticas de pleno emprego e de maximização da utilização dos fatores da produção, ignorou e deixou de desenhar uma política ambiental com vistas à melhor qualidade de vida.
Pode-se deduzir que ambos os sistemas foram alicerçados em uma visão clássica de desenvolvimento e crescimento econômico, fundado em um industrialismo totalmente agressivo aos recursos naturais. Nesses modelos, a regra é o acúmulo de capital e a produção de riqueza, ignorando a preservação dos recursos naturais como elemento de uso limitado. Os recursos naturais não são contabilizados em seus sistemas econômicos e, como consequência, a defesa do meio ambiente e o crescimento econômico são vistos como inconciliáveis e excludentes.[9] Trata-se, de fato, de uma racionalidade econômica de curto prazo, orientada para a acumulação de capital.
Em síntese, esse divórcio entre a concepção de atividade econômica e ambiente é, pois, uma incontestada crise ecológica. A problemática ambiental questiona os processos econômicos e tecnológicos que estão sujeitos à lógica de mercado, resultando em degradação do ambiente e prejudicando a qualidade de vida. Pelo que se pode depreender, a crise ecológica levanta a necessidade de introduzir reformas no Estado, incorporando normas no comportamento econômico e produzindo técnicas para controlar os efeitos contaminantes, com o propósito de dissolver as externalidades sociais e ecológicas geradas pela racionalidade do capital.[10]
Fazendo um diagnóstico da crise das três funções econômico-ecológicas da biosfera, ou seja, oferta de recursos, assimilação de resíduos e disponibilização de serviços ambientais, Pureza[11] constata que são inquietantes as previsões concernentes à escassez desses recursos em curto prazo, levando em consideração as taxas de consumo atuais dos recursos não renováveis de importância estratégica, tais como o carvão, o gás natural e o petróleo, bem como dos recursos naturais renováveis, que dão sinais de decréscimo. Assevera o autor que, da mesma forma, a função da assimilação está em crise, tendo em vista o intenso ritmo de produção. O efeito estufa, associado à diminuição da camada de ozônio, denuncia, segundo o autor, que a crise ambiental é um fenômeno integrado das três dimensões referidas. Essa crise ganhou um novo patamar no final do século XX e começo do XXI ao alcançar os limites do planeta, como a mudança climática, acidificação dos oceanos, perdas e extinção em grande escala da biodiversidade, poluição atmosférica difusa, entre outros.
Diante do fracasso do desenvolvimento econômico dos Estados e da ameaça de intensificação da mencionada crise, pergunta-se: quais as propostas alternativas que vão se formando?
A primeira delas é da economia do ambiente, que se funda, em síntese, no cálculo econômico dos bens ambientais. O conceito dessa proposta, segundo Derani,[12] é que tal modelo procura normatizar uma economia para uso de um bem e determinar artificialmente um valor para a conservação de recursos naturais. Afirma a autora que esses são os meios encontrados para integrar os recursos naturais ao mercado.
Ao que parece, essa teoria conserva ainda liame com as teorias econômicas clássicas, sem propor uma ruptura maior com o sistema de mercado, por exemplo, impor restrições à escala de consumo existente.
Outra proposta é a do desenvolvimento durável, sustentável, ecodesenvolvimento, ou seja, “satisfazer as necessidades do presente sem pôr em risco a capacidade das gerações futuras de terem suas próprias necessidades satisfeitas”.[13]
Essa proposta ganhou maior divulgação e pretende, como resultados mais visíveis, uma justiça intergeracional, em que uma geração não tem o direito de desperdiçar aquilo que recebeu e menos ainda de degradar e comprometer o direito das gerações futuras, no que concerne aos recursos ambientais.
Por outro lado, o desenvolvimento duradouro busca um paradigma diferente da racionalidade econômica tradicional, representada por duas preocupações básicas não inseridas na mencionada racionalidade: sustentado primeiramente na não exclusão da geração futura no seu contexto e, em segundo lugar, na consideração do valor intrínseco da natureza, desvinculando-se de uma visão antropocêntrica tradicional.
Ressalta-se, entretanto, que, na prática, ainda não se tem uma aplicação significante e homogênea do modelo de desenvolvimento duradouro, trazendo, assim, incertezas incompatíveis com as necessidades da sociedade atual.
Infelizmente, a proposta de desenvolvimento duradouro não foi suficiente. As Nações Unidas, fundada no relatório o Futuro que Queremos na Conferência Rio +20, estabeleceu os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) (ou Objetivos Globais para o Desenvolvimento Sustentável). Foram inseridos no ODS 17 objetivos globais pela Assembleia-Geral das Nações Unidas, conforme estabelece a Resolução 70/1. Criou-se a Agenda 2030. As metas são amplas, interconectadas e interdependentes, mas cada uma tem uma lista separada de metas a serem alcançadas. Atingir todas as 169 metas indicaria a realização de todos os 17 objetivos. Os ODS abrangem questões de desenvolvimento social e econômico, incluindo pobreza, fome, saúde, educação, aquecimento global, igualdade de gênero, água, saneamento, energia, urbanização, meio ambiente e justiça social.[14]
O pior, ainda, é que no século XXI os problemas políticos e ecológicos estão se radicalizando com visões extremistas políticas e conflitos religiosos, bem como exaustão do planeta, concomitantemente com a sujeição a catástrofes ecológicas.
Beck[15] enfatiza que as incertezas são trazidas pela sociedade de risco16 (risk society), em fase de transição, advinda da sociedade industrial. Beck vê uma dimensão perigosa para o desenvolvimento, especialmente considerando a função da ciência e do conhecimento. O autor nota que as consequências do desenvolvimento científico e industrial são o perigo e o risco, trazendo a possibilidade de catástrofes e resultados imprevisíveis na dimensão estruturante da sociedade.
Essas incertezas, trazidas pela sociedade em transição e de risco, afetam todas as áreas, inclusive o Direito e, em especial, o Direito Ambiental, conforme nos ensina Canotilho:[17]
O efeito irradiante dos atos ou procedimentos das autoridades nas sociedades de risco ganha, por isso, uma dose relevante de atratividade na teoria do Direito público. Em vários domínios, mas sobretudo no Direito do Ambiente, no Direito urbanístico, no Direito dos consumidores, é patente que algumas das tradicionais construções jurídicas se veem hoje em sérias dificuldades para captar satisfatoriamente a complexidade subjacente à imbricação dos vários interesses convergentes, concorrentes ou contrapostos.
Há que se repensar e se aplicar imediatamente uma ruptura ao modelo vigente e levar em consideração as gerações futuras e uma política que tenha como base a preservação dos bens ecológicos em curto e longo prazos. Nesse quadro de incertezas, Ost[18] alerta que todos os componentes da tragédia parecem estar inseridos:
A enormidade das questões em jogo, a irreversibilidade dos processos em curso e o constrangimento, quase irreversível, de um movimento de desenvolvimento que arrasta as nações num consumo sempre acrescido, de que sabemos, contudo, conduzir a uma ruptura de carga do sistema ecológico. E, como na tragédia, os alertas não faltam, com vista, se ainda há tempo, a inverter o movimento e inventar uma outra origem para esta moderna história do dilúvio.
De fato, vê-se que a crise ecológica desta sociedade de risco, em fase de transição, é, de fato, o esgotamento de modelos de desenvolvimento, levados a cabo desde o início do século XIX até a atualidade.[19]
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O objetivo geral desta obra é analisar juridicamente os diversos matizes do dano ambiental, do individual ao coletivo. Nessa abordagem, também é incluída a perspectiva da aceitabilidade do dano extrapatrimonial ou moral ambiental. Pretende-se trazer ao leitor uma visão geral sobre o dano ambiental, tanto do aspecto teórico e seus entraves quanto da parte prática, por meio do laboratório do Direito, isto é, a jurisprudência.
O livro demonstra que, neste momento, a ciência climática permite fortalecer com suas evidências, abordagens preventivas e precaucionais da relação de imputação, propondo-se distintas soluções e respostas de justificação para alcançar os danos, como: a) a presunção de que danos já realizados poderão ser repetidos, devendo tais custos ser suportados por seu responsável; b) a presunção de que a exposição a alguns riscos incompensáveis ou incomensuráveis no presente é capaz de viabilizar o desenvolvimento de prejuízos no futuro, sendo, portanto, reparáveis; e c) a flexibilização da causalidade, assegurando-se que a incerteza científica não seja óbice para que o liame entre a conduta e os prejuízos seja estabelecido.
Essas conclusões encontram-se amparadas na experiência jurisprudencial norte-americana, italiana e francesa. No Brasil, já se encontra reconhecida pela jurisprudência do STJ, sendo possível compreender-se que: a) em determinados casos, os prováveis prejuízos futuros também devem estar alcançados pelas medidas de reparação imputadas ao responsável pela contaminação produzida no presente; e b) a mera exposição a alguns eventos nocivos e perigosos sobre os quais há dever de cautela a ser atendido, justifica que o responsável assuma um dever de reparar danos, ainda que não tenham sido materialmente realizados.
[2] Entende-se por crise ecológica a escassez de recursos naturais e as diversas catástrofes planetárias, surgidas a partir das ações degradadoras do ser humano na natureza. Para uma visão dessa crise, entre outros, observar o conhecido Relatório Brundtland: The World Commission On Environment And Development. Our Common Future. Nova York: Oxford University, 1987. 383p.
[3] IPCC. Climate Change 2014: Synthesis Report: Contribution of Working Groups I, II and III to the Fifth Assessment Report of the Intergovernmental Panel on Climate Change [Pachauri, R. K.; Meyer L. A. (orgs.)]. Genebra: IPCC, 2014, p. 2-5.
[4] Hardin, Garret. The Tragedy of the Commons. In: Campbell, Rex (coord.). Society and Environment: the Coming Collision. Boston: Ally and Bacon, 1972, p. 50-61.
[5] Franco, Antônio Souza. Ambiente e desenvolvimento. Textos: ambiente e consumo. Lisboa: Centro de Estudos Judiciários, 1996, p. 14.
[6] Benjamin, Antonio Herman V. A proteção do meio ambiente nos países menos desenvolvidos: o caso da América Latina. Revista de Direito Ambiental, n. 0, p. 83-84, São Paulo, RT, 1995.
[7] Franco, Antônio Souza. A proteção do meio ambiente…, cit., p. 14.
[8] Condesso, Fernando dos Reis. Direito do ambiente. Coimbra: Almedina, 2001, p. 72-73.
[9] Milaré, Édis. A política ambiental brasileira. In: Tauk-Tornisielo, Sâmia Maria (org.). Análise ambiental: estratégia e ações. São Paulo: Queiróz, 1995, p. 16.
[10] Leff, Enrique. Ecologia y capital. Cidade do México: Siglo XXI, 1994, p. 292-293.
[11] Pureza, José Manuel; Frade, Catarina. Direito do ambiente. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 1998, p. 3.
[12] Derani, Cristiane. Direito Ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 106.
[13] The World Commission On Environment And Development, cit., p. 8.
[14] Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Objetivos_de_Desenvolvimento_Sustent%C3%A1vel. Acesso em: 30 jul. 2019.
[15] Beck, Ultrich. Risk Society toward a New Modernity. Londres: Sage, 1992, p. 2-8.
[16] A sociedade de risco pode ser descrita como “uma fase do desenvolvimento da sociedade moderna em que os riscos sociais, políticos, ecológicos e individuais, criados pelo momento da inovação, iludem cada vez mais as instituições de controle e proteção da sociedade industrial” (Lash, Scott; Szerszynski, Bronislaw; Wynne, Brian (coords.). Risk, Environment & Modernity: towards a New Ecology. Londres: Sage, 1998, p. 27).
[17] Canotilho, José Joaquim Gomes. Privativismo, associativismo e publicismo na justiça administrativa do ambiente. Revista de Legislação e Jurisprudência, v. 128, n. 3.857, p. 233, Coimbra, dez. 1995-1996.
[18] Ost, François. A natureza à margem da lei: a ecologia à prova do Direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 304.
[19] Vieira, Paulo Freire; Weber, Jacques. Gestão de recursos naturais renováveis e desenvolvimento: novos desafios para a pesquisa ambiental. São Paulo: Cortez, 1996, p. 18.
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