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CLÁSSICOS FORENSE
Apresentação: Contratos e Obrigações Comerciais de Fran Martins – por Gustavo Saad Diniz
16/07/2018
O PENSAMENTO JURÍDICO DE FRAN MARTINS E O TEMPO
Fran Martins deixou obra que frequenta a práxis e a ciência jurídica, ultrapassando os limites de seu próprio tempo. Por meio de seus estudos, não somente permitiu o equacionamento de uma grande sorte de problemas de Direito comercial como promoveu a abertura sistêmica por meio de estudos científicos, construindo metodologias, categorias e instrumentos jurídicos, antes mesmo de se codificarem ou positivarem os textos prescritivos.
Na qualidade de observador prático do que a realidade econômica produziu, Fran Martins não somente compreendeu o passado, mas também descreveu o seu presente. Concomitantemente, na qualidade de cientista do Direito, ultrapassou a barreira e fixou as balizas de perspectivas futuras, atemporais, com o determinismo de uma memória do Direito comercial brasileiro. Assim como o Visconde de Cairu, Bento de Faria, Spencer Vampré, Inglez de Souza, Carvalho de Mendonça, Miranda Valverde, Waldemar Ferreira, Pontes de Miranda,[1] Sylvio Marcondes Machado, Oscar Barreto Filho, Rubens Requião, Nelson Abrão, Waldirio Bulgarelli, entre tantos outros de respeitável memória, o trabalho de Fran Martins continuará vivo por gerações, porque ele não se limitou ao confinamento reconfortante do presente, já que construiu cenários futuros, que ainda hoje são úteis ao Direito comercial.
Fran Martins produziu obras de grande relevância para o Direito brasileiro. Dentre elas destaca-se, por exemplo, a visionária descrição dos cartões de crédito,[2] com uma gama imensa de problemas ainda pouco pensados na época de incipiente uso do contrato. Importantíssimos são os seus Comentários à Lei de S.A. Ainda se destacam, sem exaurir os temas enfrentados por Fran Martins de forma inovadora:
(a) a separação em obrigações civis e comerciais, de forma útil para a compreensão de contratos de diversas naturezas, com a base científica apta a ser requalificada na nova dogmática do Código Civil; (b) evitar o tratamento do contrato de comissão como simples espécie ou variante do contrato de mandato;[3] (c) o posicionamento enfático quanto ao problema insolúvel do endosso sem garantia de duplicata no factoring;[4] (d) estudos sobre a sociedade limitada unipessoal, quando ainda não tínhamos quaisquer dessas figuras no Direito brasileiro;[5] (e) estudo sobre o mercado de venda de combustível;[6] (f) publicação internacional sobre negociação de ações escriturais no Direito brasileiro;[7] (g) tratamento do acordo de acionistas como contrato plurilateral;[8] e (h) análise da importância de lei uniforme sobre vendas internacionais, com especial destaque para os usos comerciais dessas vendas.[9]
Em essência, o autor nos apresenta a vivência da prática para interpretação e descrição do conteúdo do texto positivo de Direito comercial, além de fornecer suporte para o estudo científico, haja vista o rigor metodológico da obra.
O texto não se restringe à mera descrição do texto da lei, porque contextualiza os contratos, inclusive com análise de bases civilistas bastante importantes diante de um CC unificado. Ele parte do fundamento privado das obrigações como base para alcance da natureza do contrato, o que ainda faz do livro um imprescindível instrumento de compreensão dos contratos empresariais.
Aliás, o texto adquire relevância ainda maior por respeitar ao extremo o torvelinho do tempo, tão caro ao Direito comercial. Escrupulosamente, Fran Martins faz reminiscências constantes à origem dos institutos e referências à gênese do Código Comercial de 1850, o que torna essa doutrina ainda mais valiosa para preservar a compreensão evolutiva do instituto jurídico, mantendo a orientação de entender o mercado por meio do significado dos elementos de civilidade e especialmente da história da economia.[10] Trata-se do dimensionamento do comércio e do quanto são cosmopolitas as relações jurídicas que dele emanam.[11] A homenagem é necessária ao autor, porque a obra compõe a essência do Direito comercial brasileiro, por meio da tradição do respeitabilíssimo comercialista cearense.
A IMPORTÂNCIA DE MANTER A OBRA ATUALIZADA
Além de um grande intelectual e literato, Fran Martins vivenciou ativamente a prática comercial, transportando para seus estudos científicos a praxe mercantil. Nascido em 13 de junho de 1913, em Iguatu, Ceará, formou-se em 1937 pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará, tornando-se posteriormente professor catedrático na instituição. Participou de diversos congressos internacionais e chegou a estagiar no Tribunal de Comércio do Sena, em Paris, em 1961. Foi fundador e secretário-geral do Instituto Clóvis Bevilacqua.
A revisitação de seus textos permite tomar consciência de conquistas passadas e sugestões futuras de aperfeiçoamento pragmático.[12] Foi um retratista da realidade do seu tempo, mas se projetou como doutrinador para a compreensão futura de fenômenos econômicos. Com personagens desse devir, compreende-se com Karl Larenz o intertempo do homem e a projeção histórica de juristas como Fran Martins, porque seu passado “é uma parte integrante do seu ser atual; e como tal tem um poder multímodo sobre o homem e, quando este dele se desliga, tal acontece em conflito com esse mesmo passado. O passado não é simplesmente algo que já passou, e assim um evento pretérito. O mundo histórico que o homem cria à sua volta e no qual vive a sua própria vida é tão contínuo como variável; mantém-se através do decurso dos tempos, da sucessão de gerações e apresenta-se continuamente como algo de novo”.[13] O homem então se projeta do passado e lança suas marcas no futuro.
É importante anotar, ainda, que a atualização teve por premissa a manutenção do estilo do autor, cuja técnica se alinhava à forma como ensinava. Colhe-se isso de depoimentos no tocante livro biográfico Fran Martins: o escritor e o mundo. Informou-se que o comercialista escrevia como ensinava: de maneira bastante explicativa, na ordem direta, sem termos difíceis nem complicados.[14] O respeito a esse estilo do autor – parte do grande sucesso da obra – orientou o trabalho e se presta, também, à preservação da memória do jurista.
Importante anotar, ainda, que a precisão de Fran Martins foi determinante para a busca da obra como um referencial para contratos, seja sob o ponto de vista teórico e conceitual, seja sob o ponto de vista prático. O texto serviu de suporte ainda para grandes juristas e contratualistas, por exemplo, Antonio Junqueira Azevedo, que utilizou o trabalho de Fran Martins em pareceres no seu Novos estudos e pareceres de Direito privado.[15]
TENDÊNCIAS DOS CONTRATOS EMPRESARIAIS
Tivemos a oportunidade de anotar na obra [itens 53-A, 53-B, 53-C, 53-D e 53-E] diversas perspectivas e tendências não exaustivas, mas crescentes na análise e dimensionamento dos contratos empresariais. Em verdade, o intento foi criar item separado, sem descaracterizar o conjunto da obra, mas com apontamentos que possam ser contextualizados sobre: (a) a importância das cláusulas gerais no atual sistema positivo brasileiro e a necessidade de preenchimento com os valores peculiares ao Direito de empresa e ao mercado; (b) compreensão de encadeamentos contratuais em coligações, redes e contratos-quadro; (c) identificação do diferenciado tratamento dos contratos relacionais; (d) compreensão das consequências da dependência econômica em contratos empresariais; (e) anotação de alguns novos contratos, surgidos da prática, reconhecidos como atípicos ou até como socialmente típicos, mas com impactos singulares nas análises de Direito contratual; (f) surgimento de novos tipos contratuais, impulsionados pela autonomia privada, para fazer frente às alterações tecnológicas na base de capitalismo. Sobre esse último tópico, optou-se por não abrir capítulo específico, seja por conta da multiplicidade de contratos proporcional à criatividade de quem engendra o lucro a partir da autonomia privada, seja em função de não perder a unidade lógica do texto de Fran Martins. Além disso, os pressupostos gerais da obra permitem perfeita análise desses novos tipos em construção, por meio de uma teoria geral que auxilia na interpretação dos contratos surgidos da prática.
Sempre com o objetivo de preservar o pensamento do autor, procuramos trazer para o bojo da obra a realidade de mercado e as mudanças na mobilização de capitais, hoje moldadas de forma a utilizar métodos colaborativos e estruturas organizacionais por meio de contratos. Apresentam-se, assim, esquemas reticulares de produção, com formas híbridas de contrato pautadas por relações colaborativas de longo prazo, tudo sem descuidar dos fundamentos tão caros a Fran Martins.
Destaca-se, ainda, a crescente documentação de financiamentos bancários por meio da utilização de instrumentos cambiariformes, como as cédulas de crédito. Tais contratos, enclausurados em títulos de crédito finalísticos e causais, mas revestidos de características cambiais, trouxeram, sobretudo aos bancos, documentos com menor amplitude de discussão sobre exequibilidade e menor margem de questionamento sobre o conteúdo da obrigação [i. 401].
Acrescentou-se, na nova edição, capítulo específico sobre a Convenção das Nações Unidas para a Venda Internacional de Mercadorias [Capítulo XIV-A] em tratamento conjunto com o contrato de compra e venda mercantil. Cuida-se de inserção importante para permitir, inclusive, a comparação com o direito interno após a incorporação da CISG ao ordenamento brasileiro pelo Decreto Legislativo nº 538, de 20.03.2012, com vigência em 01.04.2014.
CRITÉRIOS DA ATUALIZAÇÃO
Uma nota importante ao leitor foi a preocupação de manter intacto o fundamento do pensamento de Fran Martins, além de preservar diversas reminiscências de cunho histórico, até como forma de indicação do liame evolutivo da Ciência e do Direito brasileiro. Também foram preservados os posicionamentos do autor, ainda que em alguns casos não houvesse a convergência com o pensamento do atualizador. Isso ocorreu, por exemplo, com o item 62, a respeito da natureza de contrato da sociedade anônima, e com o item 70, em que o autor classifica o contrato de seguro como aleatório, em contrariedade à teoria do interesse incorporada pelo CC. Isso também se verificou na questão da posição ocupada pelas cooperativas de crédito atualmente, especialmente analisadas no item 378.
As atualizações, então, serão feitas com base em três tipos de notas de redação:
- atualizações de legislação e de raciocínios internos relativos à nova lei serão simplesmente modificadas no texto e contextualizadas no pensamento do autor, desde que haja compatibilidade com a alteração legislativa, dispensando-se nota de contextualização;
- textos novos serão inseridos como notas do atualizador, com destaque e afastamento de margem, a fim de manter a obra atualizada e com informações úteis sobre novos contratos, com a intenção de preservar o pensamento de Fran Martins;
- conforme noticiado, houve a inserção de novo capítulo (XIV-A) a respeito da convenção A matéria é nova e com importante repercussão no direito contratual. Sendo abordagem mais alongada, de modo a facilitar a compreensão e integração do texto à obra de Fran Martins, optou-se para redação sem recuos ou alterações gráficas, de modo a facilitar para o leitor a compreensão e a interpretação comparada à compra e venda mercantil feita em território nacional. É feita tal advertência para que seja identificado o que efetivamente foi lavrado pelo importante autor Fran Martins. O mesmo expediente (de não utilizar notas do atualizador) foi utilizado no item 216 sobre o contrato de distribuição, com vistas a facilitar a integração ao texto;
- há diversas citações de acórdãos ao longo da obra, que não constavam do original, mas que foram introduzidos nos respectivos temas para dar concreção e demonstrar a interpretação dos Tribunais.
Gustavo Saad Diniz