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Por uma estratégia nacional de infraestrutura de dados

Otavio Venturini
11/08/2025
Nos últimos anos, intensificou-se o reconhecimento de que os dados têm valor estratégico comparável, ou até mesmo superior, ao de recursos tradicionais. A analogia de que os dados seriam o “novo petróleo”1 – formulada por Clive Humby em 2006 e popularizada pela capa da revista The Economist em 20172 – dá o tom dessa mudança. Ao mesmo tempo, a relevância crescente do tema impõe novos desafios aos Estados: assim como no passado se planejou a infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações, hoje é urgente definir uma estratégia nacional para a infraestrutura de dados, de modo a garantir benefícios amplos à sociedade.
A importância do tema decorre das transformações socioeconômicas em curso. A economia digital, impulsionada pelo big data e aplicações da inteligência artificial, depende criticamente de uma base robusta de data centers, redes de alta capacidade e plataformas digitais. Nações que dominarem esses meios essenciais tendem a obter vantagens em inovação, desenvolvimento e soberania digital. Por outro lado, países que permaneçam apenas como consumidores passivos de serviços digitais estrangeiros podem ver agravadas sua dependência tecnológica e desigualdades.
Diante desse cenário, o Brasil ensaia seus primeiros passos: editou-se o Decreto nº 12.198/2024, que estabelece a Estratégia Federal de Governo Digital 2024–2027 e institui a chamada Infraestrutura Nacional de Dados no âmbito da administração pública federal; além disso, discute-se uma ambiciosa Política Nacional de Data Centers para atrair investimentos e fomentar a economia digital verde.3
Infraestrutura de dados: uma definição
Infraestrutura de dados pode ser definida como o conjunto de instalações físicas, tecnológicas e lógicas que viabilizam o fluxo, o armazenamento, o processamento e a distribuição de grandes volumes de dados, sustentando a economia digital e as atividades da sociedade em geral.4
Esse conceito engloba uma variedade de componentes interdependentes. (i) Data centers figuram como o núcleo de armazenamento e processamento, abrigando servidores e equipamentos de TI em ambientes controlados. (ii) Satélites de comunicação e sistemas de cabos submarinos integram a infraestrutura ao viabilizar a conectividade global de internet – os cabos submarinos transportam cerca de 99% do tráfego internacional de dados5, conectando continentes por meio de rotas de fibra óptica submersa, enquanto os satélites garantem cobertura a áreas remotas e a serviços estratégicos. Ademais, as (iii) redes de telecomunicações de alta capacidade, incluindo backbones de fibra óptica terrestres, redes móveis de última geração (como o 5G) e a infraestrutura de banda larga fixa, compõem a espinha dorsal pela qual os dados trafegam até os usuários finais.
Em suma, assim como estradas, portos e linhas férreas foram infraestrutura vital na era industrial, na era da informação a infraestrutura de dados consiste nesses meios compartilhados para múltiplos fins, suportando uma miríade de serviços e aplicações.
É importante notar que o conceito de infraestrutura de dados não se confunde integralmente com a noção tradicional de infraestrutura de telecomunicações, embora haja superposição parcial. Enquanto a infraestrutura de telecom (redes de telefonia, cabos coaxiais, torres de rádio etc.) foi vista como utilidade pública6 para transmissão de comunicação ou informação, a infraestrutura de dados constitui uma camada ampliada, orientada à gestão dos dados enquanto recursos (em si mesmos), abarcando sua hospedagem, processamento para diferentes finalidades e circulação em escala global. Essa diferença de propósito reflete momentos históricos distintos: a necessidade atual de lidar com volumes e velocidades de dados sem precedentes, voltados a aplicações de machine learning, serviços digitais onipresentes e integração de cadeias produtivas em tempo real. Assim, a infraestrutura de dados inclui elementos que não são tradicionalmente tratados de forma central ou específica pela regulamentação clássica de telecomunicações, como os data centers, cabos submarinos de propriedade privada e pontos de troca de tráfego (IXPs), cuja operação e relevância cresceram paralelamente ao avanço da economia digital.
Pontos sensíveis da infraestrutura de dados
Há, todavia, pontos de atenção que devem nortear a elaboração e implementação de uma estratégia nacional de infraestrutura de dados. Isto é, os formuladores de políticas precisam enfrentar sobre esses aspectos sob pena de a estratégia não cumprir seus objetivos ou mesmo gerar efeitos adversos. São eles:
Soberania digital: a dependência do Brasil em relação à infraestrutura digital estrangeira é elevada. As principais plataformas de nuvem e comunicação utilizadas no país são controladas por empresas sediadas nos Estados Unidos, o que acarreta vulnerabilidades jurídicas: leis como o CLOUD Act (Clarifying Lawful Overseas Use of Data Act) autorizam autoridades americanas a acessar dados armazenados por empresas sob sua jurisdição, mesmo fora do território dos EUA. Na União Europeia, onde aproximadamente 70 % do mercado de computação em nuvem é dominado por empresas norte-americanas como Amazon, Microsoft e Google, a resposta institucional se materializou por meio do projeto GAIA‑X, que busca promover uma infraestrutura federada, interoperável e segura, baseada em valores e padrões europeus (Leiden Law Blog, 2025). O Brasil, por sua vez, ao atrair data centers internacionais, deve exigir contrapartidas concretas (como, p. ex., a exigência de armazenamento local de dados sensíveis, cumprimento da LGPD e do Marco Civil da Internet, e estímulo à indústria nacional) como forma de proteger sua soberania digital.
Sustentabilidade: a ampliação da infraestrutura digital acarreta impacto ambiental crescente. Estima-se que data centers consomem atualmente cerca de 1,5–2% da eletricidade global, podendo dobrar até 2030, chegando a aproximadamente 3–4%, impulsionados por aplicações de inteligência artificial generativa (IEA, 2025; Deloitte, 2024; Goldman Sachs, 2024). Embora o Brasil disponha de matriz elétrica majoritariamente renovável, a expansão do setor exige políticas que imponham critérios rigorosos de eficiência energética e gestão de resíduos eletrônicos. A Política Nacional de Data Centers (“Redata”) propõe incentivos fiscais para empreendimentos que utilizem fontes limpas (como solar, eólica e hidrogênio verde), além de exigir conteúdo local e reserva de capacidade computacional para uso doméstico (Brasil, Ministério da Fazenda, 2025; CNN Brasil, 2025). Tais medidas conciliam desenvolvimento digital e sustentabilidade ambiental, garantindo retorno estratégico ao país.
Inclusão digital: de acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2024 (NIC.br, 2025; IDEC, 2025), 83% dos domicílios brasileiros estão conectados à internet, mas apenas 22% da população apresentam conectividade significativa (caracterizada por acesso com qualidade, regularidade e dispositivos adequados). Os dados também apontam disparidades: 85% de cobertura nas áreas urbanas contra 74% nas rurais, e nas classes A/B o acesso é quase universal, enquanto nas classes D/E é de apenas 68%. Além disso, cerca de 29 milhões de brasileiros permanecem desconectados, especialmente no Norte e Nordeste (NIC.br, 2025; IDEC, 2025).
Lacunas regulatórias: o Brasil ainda carece de um marco normativo integrado para a infraestrutura de dados. Hoje, a regulação está dispersa entre telecomunicações, proteção de dados, segurança cibernética e outras áreas correlatas. A União Europeia, por meio da Diretiva NIS2 (2022), classificou provedores de serviços de computação em nuvem e plataformas digitais como entidades essenciais ou críticas, impondo-lhes exigências rigorosas em termos de segurança da informação e resposta a incidentes. No Brasil, serviços digitais essenciais ainda não foram incluídos de forma sistemática nas políticas nacionais de segurança da informação. Também faltam diretrizes sobre data residency, interoperabilidade entre sistemas e governança de dados não pessoais. A instituição de um Marco Nacional de Infraestrutura Digital poderia preencher essas lacunas, estabelecendo princípios como continuidade, equidade, transparência e segurança no uso dessa infraestrutura estratégica.
Conclusão
O desenvolvimento de uma infraestrutura nacional de dados revela-se uma necessidade objetiva diante da centralidade crescente dos dados para o crescimento econômico, a competitividade internacional e a prestação de serviços públicos. O Brasil já demonstra iniciativas relevantes, como a Estratégia Federal de Governo Digital 2024–2027 e a proposta de Política Nacional de Data Centers.
No entanto, terá pela frente em sua percurso um contexto de lacunas regulatórias, alta dependência de serviços estrangeiros, desigualdade de acesso e riscos ambientais crescentes. A ausência de coordenação institucional e de marcos normativos integrados limita a eficácia das ações em curso. Uma estratégia nacional consistente deve responder a esses desafios de forma sistêmica, assegurando condições adequadas de investimento, interoperabilidade, governança e sustentabilidade. Sem essa estruturação, o País tende a manter posição periférica na economia digital, com perdas em autonomia tecnológica e capacidade de captura de valor.
Referências
ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações. Anatel debate importância dos cabos submarinos. Brasília, 27 set. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-debate-importancia-dos-cabos-submarinos. Acesso em: 16 jul. 2025.
BRASIL. Decreto nº 12.198, de 1º de setembro de 2024. Institui a Estratégia Federal de Governo Digital 2024–2027 e a Infraestrutura Nacional de Dados, e dá outras providências. Diário Oficial da União, 1º set. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2024/Decreto/D12198.htm.
BRASIL. Ministério da Fazenda. Haddad apresenta plano de crescimento sustentável e anuncia Política de Data Centers em conferência nos EUA. Notícias, 5 maio 2025. Disponível em: https://www.gov.br/fazenda/pt-br/assuntos/noticias/2025/Maio/haddad-apresenta-plano-de-crescimento-sustentavel-e-anuncia-politica-de-data-centers-em-conferencia-nos-eua. Acesso em: 16 jul. 2025.
CNN BRASIL. Na disputa global por data centers, Brasil prepara incentivos fiscais. 28 abr. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/na-disputa-global-por-data-centers-brasil-prepara-incentivos-fiscais/. Acesso em: 16 jul. 2025.
DELOITTE. HARDIN, Kate; CROSSAN, Gillian; BUCAILLE, Ariane; STEWART, Duncan. GenAI power consumption creates need for more sustainable data centers. Deloitte Insights – Tech Predictions 2025, dez. 2024. Disponível em: https://www2.deloitte.com/us/en/insights/industry/technology/2025/genai-power-consumption-sustainable-data-centers.html. Acesso em: 16 jul. 2025.
GOLDMAN SACHS. AI-driven data centre power demand will grow 160% by 2030. 2024. Disponível em: https://www.goldmansachs.com/insights/articles/AI-poised-to-drive-160-increase-in-power-demand/. Acesso em: 16 jul. 2025.
IEA – International Energy Agency. What the data centre and AI boom could mean for the energy sector. mar. 2024. Disponível em: https://www.iea.org/commentaries/what-the-data-centre-and-ai-boom-could-mean-for-the-energy-sector. Acesso em: 16 jul. 2025.
IEA – International Energy Agency. Energy demand from AI. 2024. Disponível em: https://www.iea.org/reports/energy-and-ai/energy-demand-from-ai. Acesso em: 16 jul. 2025.
LEIDEN LAW BLOG. KRAAK, Sjoukje. GAIA-X: Europe’s values-based counter to U.S. cloud dominance. 15 abr. 2025. Disponível em: https://www.leidenlawblog.nl/articles/gaia-x-europes-values-based-counter-to-u-s-cloud-dominance. Acesso em: 16 jul. 2025.
LEGAL INFORMATION INSTITUTE. Public utility. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/wex/public_utility. Acesso em: 16 jul. 2025.
MAZZUCATO, Mariana. Let’s make private data into a public good. MIT Technology Review, v.121, n.4, p. 74–75, 2018.
MAZZUCATO, Mariana; EAVES, David; VASCONCELLOS, Beatriz. Digital Public Infrastructure and Public Value: What is “public” about DPI? UCL Institute for Innovation and Public Purpose, Working Paper IIPP 2024/05, mar. 2024.
NIC.br. TIC Domicílios: em 20 anos, Brasil dá salto na universalização da internet. São Paulo, 13 maio 2025. Disponível em: https://nic.br/noticia/na-midia/tic-domicilios-em-20-anos-brasil-da-salto-na-universalizacao-da-internet/. Acesso em: 16 jul. 2025.
IDEC – Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Acesso desigual à internet persiste no Brasil: Idec cobra ação imediata. Sala de Imprensa, 13 maio 2025.
UNITED NATIONS. Roadmap for Digital Cooperation. ONU, 2020.

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NOTAS
1 “Data is the new oil. It’s valuable, but if unrefined it cannot really be used”.
2 A revista trouxe como manchete: The world’s most valuable resource is no longer oil, but data The data economy demands a new approach to antitrust rules.
3 CNN Brasil. Política de data centers deve ser lançada nos próximos dias, diz Alckmin. CNN Brasil, 26 jun. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/economia/macroeconomia/politica-de-data-centers-deve-ser-lancada-nos-proximos-dias-diz-alckmin/. Acesso em: 15 jul. 2025.
4 Numa linha argumentativa que ressalta a publicização do tema, a professora da University College London (UCL) Mariana Mazzucato defendeu em um artigo publicado 2018 que os dados (especialmente aqueles gerados pelos usuários e coletados por grandes empresas de tecnologia) deveriam ser compreendidos como “bens públicos” e geridos de modo a beneficiar a sociedade. Argumenta Mazzucato que grande parte dessas informações resulta de tecnologias financiadas pelo próprio público, defendendo a criação de um repositório público para deter “os dados do público” e fornecê-los às big techs em seus termos, em vez de permitir que essas empresas continuem explorando dados privados sem retorno adequado ao bem comum. Em trabalho mais recente, publicado em 2024, Mazzucato, Eaves e Vasconcelllos afirmam ser necessário conceber uma infraestrutura digital (como identidades digitais, sistemas de pagamento e plataformas de compartilhamento de dados) governada como infraestrutura pública, isto é, com foco na maximização do valor público, na governança orientada ao bem comum e na garantia de acesso universal, transparência e inclusão social. MIT Technology Review, 27 jun. 2018. Disponível em: https://www.technologyreview.com/2018/06/27/141776/lets-make-private-data-into-a-public-good/. Acesso em: 16 jul. 2025. MAZZUCATO, Mariana; EAVES, David; VASCONCELLOS, Beatriz. Digital Public Infrastructure and Public Value: What is “public” about DPI? Working Paper IIPP WP 2024-05. London: UCL Institute for Innovation and Public Purpose, 2024.
5 ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações. Anatel debate importância dos cabos submarinos. Brasília, 27 set. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/assuntos/noticias/anatel-debate-importancia-dos-cabos-submarinos. Acesso em: 16 jul. 2025.
6 No sentido anglo-saxão da expressão. Vide: LEGAL INFORMATION INSTITUTE. Public utility. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/wex/public_utility. Acesso em: 16 jul. 2025.