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TRIBUTÁRIO
É preciso rever a “prisão por dívida tributária” diante da Covid-19
Hugo de Brito Machado Segundo
16/09/2020
Do ponto de vista jurídico, inúmeros equívocos permeiam o entendimento acolhido pela jurisprudência, tanto do STJ como do STF, de que o ato de declarar e não recolher o ICMS configura crime contra a ordem tributária.
A dívida referente ao ICMS é própria, sendo o contribuinte o sujeito passivo legalmente definido da exação. A eventual repercussão do ônus representado pelo ICMS nos preços das mercadorias – de resto possível em relação a qualquer outro custo da atividade empresarial – não altera essa realidade.
Assim, notadamente diante de dívida apurada e declarada pelo próprio sujeito passivo, considerar crime o inadimplemento representa verdadeira hipótese de prisão por dívida, algo que a ordem jurídica dos países que pretendem ser civilizados invariavelmente repele, assim como tratados de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.
Mesmo no caso de tributos que o sujeito passivo tem legalmente a faculdade de proceder à retenção diante de um terceiro, terceiro este também legalmente definido como sujeito passivo (na condição de contribuinte), ou seja, quando se está diante de efetiva hipótese de responsabilidade tributária, o mero não pagamento não deve ser, por si só, considerado crime. É o caso da retenção da contribuição previdenciária devida pelo empregado, feita pelo empregador. Nele, o empregador tem o dever de pagar o salário integralmente ao empregado, dever este que a legislação biparte, impondo que parte seja entregue ao empregado, e outra parte, correspondente à contribuição por este devida, seja entregue ao Fisco.
Imagine-se, por hipótese, que um advogado presta serviços ao seu cliente, confeccionando um parecer que lhe foi encomendado. O pagamento do parecer é acordado em duas parcelas iguais e sucessivas. O cliente paga a primeira, mas, antes do vencimento da segunda, o advogado lhe pede que entregue o valor correspondente a um terceiro, ao qual ele, o advogado, está devendo. Caso o cliente não pague a este terceiro, isso significa que continua devendo a quantia acordada, que pode ser cobrada pelos meios legais, com os acréscimos inerentes ao atraso, mas não se pode dizer que ele “se apropriou”, do ponto de vista criminal, de coisa alguma.
Até porque os recursos, de cuja retenção se cogita, podem mesmo nem existir de fato. O cliente poderia dispor de liquidez para pagar apenas a primeira parcela dos honorários, assim como o empregador pode dispor apenas do numerário suficiente para adimplir a parcela líquida do salário de seus funcionários, o que conduz às implicações da COVID19 referidas no título deste artigo.
Foi recentemente divulgada a notícia de um empresário preso pelo mero não pagamento do ICMS declarado e não pago por empresas por ele administradas. Não se pretende, aqui, comentar especificamente o aludido caso, até porque ele pode possuir particularidades não devidamente noticiadas, desconhecidas por quem escreve estas linhas mas ainda assim relevantes para que se avalie a correção, ou não, do que ali aconteceu. Mas a notícia chama a atenção, de qualquer modo, para o fato de que o Fisco e o Ministério Público estão, como seria de se supor, levando adiante a aplicação do entendimento firmado pelo STF, de que o mero não pagamento do ICMS declarado pelo próprio contribuinte é crime. É preciso, então, nesse contexto, recordar o contexto de pandemia pelo qual a humanidade está passando, e seus reflexos sobre a economia.
Por imposição do Poder Público, pessoas foram proibidas de circular, de se reunir, de se aglomerar. Em alguns casos, isso implicou, na prática, ao encerramento de algumas atividades (v.g., agências de viagens, hotéis, casas de espetáculos…), inviáveis diante da quase que completa falta de público. Em outros, o fechamento não foi apenas uma consequência prática, mas determinação direta e explícita do Estado, sendo possível citar como exemplo as empresas de transporte público de passageiros, que em alguns Estados, durante certo período, foram mesmo obrigadas a fechar as portas de suas garagens.
É certo que muitas atividades conseguiram se reinventar, com o uso da tecnologia, e algumas podem mesmo ter experimentado algum ganho com a crise, como não raro acontece. Não é o propósito deste artigo discutir tais situações, e muito menos questionar a legitimidade das medidas governamentais destinadas a conter o avanço da doença. Não se põe em dúvida o acerto de conter a circulação e o contato das pessoas para dificultar a propagação e a circulação do vírus. Mas a questão é que tais medidas, impostas por normas governamentais, tiveram impactos inegáveis no exercício de atividades econômicas, na maior parte das vezes impactos muito negativos.
Esse é o contexto no qual se deve revisitar a questão de que o ato de declarar e não pagar o ICMS é um crime contra a ordem tributária. Imagine-se o empresário que realizou vendas em meses anteriores, as quais ensejaram a apuração e a declaração do montante de ICMS sobre elas incidente. Mas muitas dessas vendas podem sequer ter sido adimplidas pelos consumidores. E mesmo as devidamente pagas foram sucedidas por uma queda brutal das vendas, nas semanas e meses seguintes, queda não verificada com igual intensidade nos custos e nas despesas correspondentes. Basta pensar em uma rede varejista, com todas as suas lojas fechadas, mas que segue submetida a compromissos com seus empregados, fornecedores, locadores, e com o Fisco.
A literatura do Direito Penal tem cogitado, em tais circunstâncias, da aplicação da chamada “inexigibilidade de conduta diversa”, como forma supralegal de exclusão da culpabilidade. A conduta seria ilícita, típica, mas não seria o caso de punir o infrator, pois não seria razoável exigir dele, dadas as circunstâncias, comportamento diferente daquele paradoxalmente considerado criminoso. E a jurisprudência tem aceito aplicar essa tese aos crimes contra a ordem tributária em geral, mesmo no que tange às situações de tributos efetivamente retidos pelo agente, na condição de responsável tributário.
É preciso, porém, fazer um esclarecimento. Trata-se de inexigibilidade de conduta diversa, não de impossibilidade de conduta diversa. Há magistrados que confundem esses conceitos, e só admitem considerar a excludente supralegal em situações nas quais uma conduta diversa daquela definida como crime seria completa e factualmente impossível. No caso de uma empresa desprovida de recursos, em total dificuldade financeira, e que preferiu usar o pouco que tinha para pagar empregados, ou a conta de energia, em vez de pagar seus tributos (que não obstante foram todos contabilizados e declarados), há juízes que indagam na sentença, retoricamente, para fundamentar a não aplicação da excludente: “por que não pediu emprestado a terceiros para pagar o Fisco?”
Em verdade, a excludente supralegal é invocável quando se está diante de situação na qual uma conduta diferente da punível é possível, mas não é exigível por não ser razoável pretendê-lo diante de circunstâncias que fogem à normalidade. Se a conduta diversa não for sequer possível, é óbvio que não se pode sequer cogitar de qualquer imputação jurídica em decorrência de não ter sido adotada, pois o Direito regula a liberdade humana, ausente no caso de completa impossibilidade factual.
A excludente, como dito, trata de inexigibilidade, por irrazoabilidade diante das circunstâncias, anormais e diversas daquelas imaginadas quando da feitura da regra penal, que assim é “derrotada”. Não é razoável exigir de um empresário que deixe de pagar seus empregados e contraia um empréstimo (quem se arriscaria a emprestar?) para pagar uma dívida tributária devidamente contabilizada e declarada, como condição para não ser preso. Aliás, o exemplo mostra o absurdo da própria pretensão de trazer o Direito Penal para esse ambiente: para evitar a “apropriação indébita previdenciária”, seria preferível, ao empresário que dispusesse de recursos para pagar apenas a parcela líquida do salário de seus empregados, não os pagar em absoluto.
Seria preferível, diante de dificuldades financeiras, encerrar as atividades, em vez de tentar dar sequência a elas e correr o risco de não conseguir pagar os tributos sobre elas incidentes. Ou, pior: seria preferível não os declarar, pois neste caso o Fisco, se descobrisse a ocorrência dos fatos geradores e a existência da dívida, faria apenas o lançamento do tributo com seus acréscimos, porquanto a criminalização, nesta hipótese, dependeria da difícil prova do dolo.
A conclusão não poderia ser mais clara. Em um contexto de pandemia e de crise econômica, em que normas estatais restringiram (com razão, mas restringiram) o exercício das atividades econômicas, uma tese que leva o empreendedor, para não ser considerado um criminoso, a preferir não empregar ou não pagar aqueles que empregou, omitir operações até então normalmente contabilizadas, ou mesmo desistir, encerrando por completo suas atividades, precisa urgentemente ser revista.
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